Friday, May 17, 2013

"O BOA TARDE" - Uma história do Helder Salgado

Mais uma vez o Hélder teve a amabilidade de escolher o Al Tejo para divulgar em primeira-mão mais uma obra literária da sua autoria.
Uma história de vida protagonizada por mais um desfavorecido da sorte, nascido e criado nas Hortinhas e que como tantos outros a quem a felicidade não sorriu se viu obrigado a calcorrear terras limítrofes em busca do ganha-pão.
História humana que nos remete para outras épocas e que por certo irá avivar a memória de muitos não só pelas personagens que fazem parte da mesma mas também pelos locais onde se desenrola.
Faz o Hélder questão de dedicar esta história a um amigo que por força das contingências da vida se viu forçado a procurar uma vida melhor noutras longínquas paragens;. O Manuel Augusto.
Chico Manuel

BOA TARDE”  (O HOMEM SEM RUMO)
 Desde que me conheço, não como homem, mas como menino, sempre ouvira estas duas palavras de saudação: Bom-dia, boa-tarde conforme o período do dia.
Ainda mal via, e ao colo de minha mãe, comecei a ouvir estas palavras.
Depois com o meu crescimento físico e à medida do meu crescimento mental, ia-me apercebendo da importância das palavras.
Cedo descobri que as palavras eram o melhor meio de entendimento entre as pessoas.
Quanto me divertia o gesticular das pessoas quando conversavam. Uns gesticulavam com gestos largos, com pequenas passadas e voz alta, outros com gestos moderados e de voz baixa.
Quanto me irritava quando o meu pai me dizia: “não falaste, ou, porque falas a fulano, a beltrano ou cicrano”.
Mas o que ainda mais me custava e me fazia sentir uma revolta interior, porque não a podia exteriorizar, era quando alguma velha fanhosa e com segundo sentido me cumprimentava “Bom-dia menino Helder; o menino está bonzinho?” e eu tenso, com o sangue a fervilhar-me nas veias, vermelho como um pimentão e com uma vontade enorme de a mandar calar ou para outro lado, mesmo sem ter o hábito de mandar alguém, ali estava, caladinho, sem articular palavra pois se o fizesse, era a minha mãe que me ajustaria as contas.
Como naquele tempo, ainda hoje me soa como uma melodia o simples cumprimento “Adeus Helder” .
Era a época, uma época que depois reconheci que a palavra não se deveria negar a ninguém, sobretudo aquelas duas palavras de saudação, Bom-dia, Boa-tarde e com o Sol já posto, Boa-noite.
Apesar de se ter convencionado dar nome às pessoas e às coisas, nunca me surpreendi com algum nome fora do vulgar ou até que me parecesse aberração.
O que para ainda hoje não vejo explicação é para duas alcunhas que puseram a duas pessoas, dois irmãos. Ao mais velho chamaram-lhe Boa-Tarde e ao mais novo Bom-Dia.
Parece-me, na minha apreciação de atribuição destas alcunhas, que estão invertidas.     
O mais velho deveria ter tido a alcunha de Bom-Dia, pois tendo nascido mais cedo dever-lhe-iam ter atribuído a primeira parte do dia, o período da manhã e ao outro irmão, o da tarde.
Certo é que estas duas pessoas não se importavam com o chamamento.

O Tonho Boa-tarde
Estas personagens nasceram na simpática aldeia das Hortinhas e vieram morar para a histórica Vila de Terena.
Morar não será talvez o termo apropriado, pois muito novinhos, para tratarem da vida, passavam muito tempo, épocas mesmo, fora de casa.
O Boa-Tarde era uma pessoa de estatura meã, magro, simpático e sempre sorridente.
Era, como me garantiram algumas pessoas que ainda lidaram com ele, a bondade em pessoa.
Apesar da sua condição de pobreza, parecia sempre feliz e quando conversava com alguém era um bom comunicador.
Bom gesticulador dando, enquanto conversava, pequenas passadas, para trás, para frente e lados, sempre afável e sorridente.
Não fora à escola mas a sua capacidade de aprendizagem permitia-lhe assimilar as questões mais correntes da vida.
Nasceu no monte do Outeiro, uma casa com duas divisões, lajeada e com telhado de telha vã, encimada de ripas dispostas em salto de rato.
A chaminé, apesar de fumosa, sobretudo no Inverno, era o conforto da casa. Os grandes lumes de feixes de esteva, onde também se juntavam uns paus de azinho, que a mãe recolhia das azinheiras secas e de algumas atingidas por raios quando das trovoadas de Fevereiro, aqueciam toda a casa.
O menino Tonho, o Boa-Tarde, cedo se apercebeu que teria que ir quente para a cama.   Era composta de tábuas de caixotes, provenientes da fábrica de sabão da Sofal, em Vila Viçosa, que nesse tempo abundavam e onde a habilidade do mestre Está, carpinteiro de obra grossa e fina, conseguiu pregar em quatro barrotes. Se ao contrário procedesse era mais que certo, não se conseguir aquecer durante as longas noites invernosas.
Se a roupa da cama mal o aquecia, o mesmo se poderia dizer da roupa que ele usava de dia, mas aqui a sua esperteza levava-o, a procurar as soalheiras bem batidas pelo Sol e abrigadas do vento, sobretudo do vento suão.
Este atributo era divulgado pela mãe, que na mira de proteger o filho ia contando à vizinhança.

O “Bicho” de são Miguel da Mota.
O pai, natural da região de Borba fora moleiro no moinho da Figueirinha.    
Este moinho, de uma só mó, tal como a maior parte deles, estava situado na margem direita, no sentido do correr de água, na ribeira do Lucefécit, perto da serra de São Miguel da Mota.
O Véstias de Borba não se cansava de enaltecer aquela região. Sabia e descrevia todas as curvas da ribeira a quem o visitava. - É a ribeira serpente, - dizia sempre esta frase, com uma contaminante alegria visível no seu olhar.
Conhecia todos os pegos onde iria encontrar os patos marrecos, onde via a fugitiva galinha de água, ou a rocha onde majestoso cágado dormitava ao Sol.
Do que ele menos gostava era do pica-peixe ou guarda-rios, não pelo vivo azul da sua cor, mas pelo seu voo rápido que o assustava.
 Como se tornava cómico na sua cuidadosa aproximação a qualquer freixo, cuja sombra se reflectisse na água calma e serena, na mira se ver um opulento barbo ou uma lontra.
- É um quadro com vida, - comentava sorridente.
Mesmo não tendo veia poética, não se continha, e, por vezes, lá aparecia uma quadrazinha.

     “ Neste lugar tão agreste
       Serra de rara beleza
       O encanto que me deste
       É um bem da Natureza”    
   
No Inverno e na Primavera, o Véstias de Borba muito raramente ia a casa.     
Era preciso aproveitar a corrente das águas e moer o mais possível, pelo que estava muito tempo sem ver o filho. Alguns domingos ia a mulher, a tia Vicência Marona, ter com ele evitando levar o menino, pois o caminho era rochoso e muito ladeirento.
 Espalhada estava a notícia, e com ela algumas suspeições, passadas de boca em boca, que as cabras da herdade de São Miguel estavam sendo dizimadas por um bicho.
 Boatos correriam que o bicho, não era quadrúpede.
 O Véstias de Borba, o moleiro, começou a sentir-se incomodado com aquela conversa do bicho.
 Não era natural do concelho do Alandroal e ainda residia há pouco tempo, na Aldeia das Hortinhas, passando a maior parte do tempo no moinho.
 Um dia, para tranquilizar o seu espírito, resolveu ir falar com o lavrador.
 Da conversa nasceu a ideia de fazerem uma emboscada ao bicho.    
 Armaram-se de caçadeira e esconderam-se numa gruta, ainda hoje existente na margem direita da ribeira, frente ao sopé da serra, que termina com uma nesga de terra rente ao leito da água.
Ali estiveram, regelados, até alta madrugada quando ouviram um som esquisito.         
Suspenderam a respiração e aguardaram numa quietude de estátua.
Quatro inquietos javalis farejavam os ares, parecendo procurar algo que outrora ali encontraram.
Os dois homens, o moleiro e o lavrador, logo tiveram a percepção que aquele local fora palco de qualquer cena fora do habitual que aquele rude sítio poderia oferecer.
Abandonaram o refúgio antes do Sol nascer, para não serem descobertos e combinando outras emboscadas.
A visita nocturna dos javalis tornou-se rotineira, até que um dia uma estranha personagem a interrompeu.
Sentou-se, sem perda de tempo e com um á vontade, de quem entra naquele jogo, já há algum tempo.
A expectativa dos dois homens aumentou, como aumentou a contenção da sua respiração e a sua curiosidade.
- Quem será e que virá ali fazer aquele sujeito, aquela hora da noite
 Esta pergunta afluiu, em primeiro lugar ao cérebro dos dois homens, mas logo foi sobreposta e confirmada por outra, quando o berrar aflitivo de uma cabra se fez ouvir.
O cérebro do moleiro sorriu de contente e de alívio.
Aquela cena irradiaria para sempre alguma suspeição, que julgava recair sobre ele.
A cabra arrastada pelo cabreiro, o Zé da Mota, que ganhara esta alcunha, pelos longos anos de servidão na herdade de São Miguel da Mota, sentia que teria o mesmo fim que tiveram outras suas irmãs de raça, há muito tempo e ali bem perto sacrificadas em nome de um Deus ou de um Demónio, mas sempre sucumbidas pela mão assassina do Homem.
De caprina em caprina geração fora passada a notícia e ela, cabra, estava prestes a ser abatida, não em nome de uma divindade, mas agora em nome de um bicho, uma invenção de um talhante sem escrúpulos.
Nos intervalos da sua aflição, do seu berrar, a cabra pensou:
 - Que diferença me faz a mim ou às minhas irmãs de raça ser abatida por um agiota ou por um sacerdote? Que Deus é este que instrumentaliza os humanos e se sacia com o nosso sangue?
Queria com os seus berros de indignação, dar uma lição aos Humanos, aqui, e na sua compreensão animal, representada pelo cabreiro.
 Na resistência ao seu moural, a cabra interrogava-se sobre os dogmas que as faziam unir em rebanhos, em bardos para seu conforto para depois lhe subtraírem os filhos, em apriscos para lhe tirarem o leite, para depois, com elas doutrinadas e indefesas, as sacrificarem em nome da fé, duma fé que nem ela, nem a sua família caprina conseguiam compreender e que agora a levava ao desespero.
E mais se interrogava porque não as deixavam livres e senhoras da sua própria vontade, como outrora viveram na serra de São Miguel, nos montes da herdade da “Deluques” e na serra de Ossa? 
Ao ouvir os berros da cabra a estranha personagem, que todos falavam em surdina e alcunhavam de bicho, precipitou para o local do som. Não tiveram dúvidas os emboscados: O bicho ou melhor os bichos de São Miguel eram bípedes.
O moleiro num gesto arrebatado tirou a espingarda ao lavrador e disparou os dois tiros de chumbo zagalote, por cima da cabeça dos dois comparsas, que varejaram um chaparro, cujas bolotas chicotearam o Zé da Mota e o velho Caturra, o talhante da aldeia.
A cabra agora solta continuou a berrar, numa entoação de contentamento vitorioso, de liberdade.

A tristeza do cabreiro
Ás cinco e meia da madrugada o cabreiro entra na casa da malhada.
As cinzas de um lume, já apagado, pareciam adivinhar o fim de uma tragédia.   
Ainda quentes, mas já moribundas, tal como a alma do Zé da Mota, que ao entrar em casa parou petrificado e incapaz de responder à mulher, ainda davam uma réstia de calor.
 - Mais uma vez... bem te avisei... e os tiros? Decerto que foram para ti e para esse velho ganancioso que te fez ladrão.
 Ao choro da filha a Maria Pulguita, a mulher do cabreiro, recolheu ao quarto.
 Zé da Mota nem uma palavra articulou, mas o seu rosto sofreu uma torrente de lágrimas, maior do que uma enchente da ribeira provocada pelas fortes enxurradas do mês de Fevereiro. Puxou uma cadeira, sentou-se e encostou a cabeça nas costas de outra. Assim esteve até ao romper do Sol.
Ao seu despontar sai de casa e vai a caminho do monte. O seu caminhar é o de um homem que se deixara vencer por umas bebedeiras e umas conversas ardilosas, teia viscosa e enleadora de onde não se consegue sair quando se lá cai.
O vale do Lucefécit, com a sua estrondosa vegetação, onde outrora, na sua imaginação de sonhador, parecia ver São Gens acenar-lhe e a Boa Nova em cima do telhado do seu Santuário de lenço branco na mão fazer o mesmo gesto, via-o agora seco e agressivo, com as silvas e os carrascos a tentarem esgatanhá-lo.
Chegado ao monte sentou-se no masseirão onde os cães e os gatos comiam, pensando no futuro que ele julgava próximo, não teria que dar de comer à mulher e à filha.
Ao julgar-se prisioneiro afluiu-lhe ao cérebro esta canção:

            “Ó vale do Lucefécit
             Ribeira da minha paixão
            O teu leito já me parece
            O fosso da minha prisão”.

 Dois pequenos e simultâneos ruídos fizeram-no voltar á realidade.
 Atrás estava a mulher com a filha ao colo e á frente o patrão acabado de sair de casa.
 O cabreiro estava a viver os piores momentos da sua vida, estava entre o acusador e o juiz, disposto a receber o castigo que o marcaria para o resto da sua vida, como a da sua mulher e da filhinha. Aqui não continha as lágrimas de revolta e de recriminação.
Sem defesa restava-lhe ouvir a sentença e partir.
Partir para onde? Sozinho ou acompanhado? Decerto que a mulher o abandonaria.
Neste cogitar de ideias viu-se numa cabana entre as rochas mais altas dos Castelinhos ou no maciço rochoso do Poio Grande, mais acolhedor e virado ao nascer e correr do Sol.
Estes pensamentos fervilhavam no confuso e agitado cérebro do Zé da Mota.
O gélido silêncio é interrompido pelo patrão.
 - Vieram por causa dos tiros? Fui eu e Véstias de Borba. Não matámos o bicho, mas ficámos com a certeza de que ele não mais voltará. Tinha que defender as cabras, são minhas e são o teu sustento, é delas que vem o leite para a tua filha, a carne para a tua família e o salário para te pagar.
Zé da Mota, soluçando, ia começar a falar, o patrão interrompeu-o:
 - Não digas nada, vão descansar, a história do bicho de São Miguel acabou agora e aqui.
Uma lágrima de ira vincou para sempre o rosto do cabreiro. - Ah se eu pudesse deitar as mãos ao Caturra, - pensou com a fúria de um cão raivoso.

A inesperada ida ao monte Outeiro do Véstias de Borba.
Nesse mesmo dia o moleiro vai a casa para contar a mulher, o sucedido.
Tinha que exteriorizar à esposa os seus pensamentos e receios, que agora se mostraram infundados com o desmantelamento da cena do bicho.  
No decorrer da conversa, o casal nota que o seu filho, Tonho, ouve esta com uma atenção não própria de uma criança da sua idade.
Nos seus lábios floriu um sorriso que impressionou os pais. Um sorriso diferente de todos os outros meninos e nunca visto em alguém, um sorriso angelical.
O Boa-Tarde estava a ser criado quase só com a mãe e, da pouca convivência com o pai advinha-lhe a sua admiração e respeito. Além disso o pai falava-lhe doutra região, com muitas hortas e árvores de fruto, que o fascinavam.
Só na manhã do dia seguinte o Véstias de Borba voltou ao moinho.       
Voltava contente e ainda mais contente porque a esposa compreendera a sua inquietação. Contudo uma interrogação lhe afligiu o pensamento, por não conseguir decifrar a desmedida atenção do filho.
Os coelhos bravos, que de noite procuravam os seus alimentos, no seu regresso às suas moradas olhavam para ele e não fugiam, as perdizes que começavam a sua safra em busca dos alimentos do dia, paravam ao vê-lo passar, os trigueirões faziam-lhe guarda de honra e saudavam-no com o seu trinado cantar.
Até respirava fundo para cheirar as estevas e o rosmaninho.
O moleiro não resistindo a tamanho encanto, quis também fazer parte daquela harmonia campestre, para ele triunfal.
Improvisou esta quadra e cantou:
       
         “O bicho já é passado
           E do medo que dele tive
           Já estou eu aliviado
          Agora sou homem livre”.

O eco retornava-lhe sete vezes o último verso “ agora sou homem livre” ,a frase que ele mais gostara de ouvir.
   
A primeira relação com a casa Godinho
Um dia a tia Marona, desceu ao monte do tio António Godinho, para pedir um pouco de azeite, que o seu, proveniente do rabisco das azeitonas que ela apanhara e que foram moídas no lagar de Terena, há muito que se acabara. Contou ao lavrador a esperteza do seu menino Tonho, mais tarde alcunhado de Boa-Tarde.
No lavrador e na sua mulher, a dona Aldonça, logo nasceu a curiosidade de conhecer o menino.
Este começou a andar muito cedo e logo que saiu de casa, tendo já algum tacto, descendo a ribanceira, que ligava o pequeno aglomerado à herdade do tio Godinho, atraído pela beleza do gado vacum, que para ele, menino, se chamavam apenas bois.
Colheu umas ervas e apontou-as ao focinho do primeiro animal que encontrou.
A vaca, que nunca tinha visto tão minúsculo tratador, olhou admirada e aceitou a comida.
O menino Tonho sorriu de admiração ao ver-se rodeado pelos animais, que no seu íntimo aplaudiam o gesto benfazejo daquela criança, quando a lavradora, que no momento varria a rua do monte, surpreendida com a junção dos animais, nota que estes rodeiam uma criança.
Esbaforida corre célere ao encontro do menino, levada por trágicos pensamentos que se poderiam ter realizado, não fora a sua providencial intervenção.
O menino na sua inocência sorri, longe de compreender a aflição da sua julgada protectora.
Os animais ficam surpresos pela acção de espanto da dona, pois também eles não conseguiam compreender a sua preocupação.
A dona Aldonça Godinho ao levar menino para o monte, vê que ele continua sorrindo, num sorrir desafiante perante um futuro que ela lia nos seus olhos cheio de dificuldades e de incertezas e que no seu raciocínio de mulher experiente terminavam em tragédia.
Ao chegar a casa contou ao marido este estranho pressentimento. Este depois de sentir um calafrio percorrer-lhe o corpo, disse para a mulher, sem nenhuma convicção, que nada se disso se iria concretizar.          
O menino depois de tomar banho e de vestir roupa nova, embora usada pelos filhos da lavradora, almoçou no monte do tio António Godinho.
Este nobre gesto fez-se ouvir em toda a freguesia de São Pedro de Terena e era, constantemente, lembrado pelo menino Boa-Tarde, que na sua ainda pequena maneira de pensar se julgava herói.

O crescimento do Boa-tarde
Passados quatro anos e meio nasce o irmão Inácio, o Bom-Dia.
O Boa-Tarde cedo se apercebeu que tinha que partilhar tudo com o mais novito, desde a comida, a roupa e a cama.
Cedo começou a pensar que para sobreviver um pouco melhor teria que sair cedo de casa dos pais.
O seu encantador sorriso parecia cativar as pessoas que nunca lhe negavam uma resposta ou um conselho, que ele, criança, assimilava e registava para futuro.
O monte do Godinho era para ele uma atracção.
Estava perto da casa da mãe. Além do gado vacum, tinha toda a espécie de galináceos, cães, gatos e porcos.
Com o seu crescimento e sobretudo com o seu poder físico foi alargando a sua esfera de acção, que o levou até à aldeia, onde se apercebeu que uma lavradora, a tia Joaquina Aperadora, tinha fama de boa pessoa e não negava uma esmola a quem quer que fosse.
A época das matanças celebrizou esta senhora até aos nossos dias pela esmola ser sempre a rechina.
É-lhe atribuída esta quadra, que se popularizou até hoje.

         “Tia Jaquina Aperadora
           Lavradora da Aldeia
           Não me deia mais rechina
          Já tenho a barriga cheia”.
    
A mãe, a tia Marona embora lhe agradasse os géneros trazidos para casa pelo filho, não lhe agradavam muito as suas deambulações, cada vez mais alargadas pelos montes da aldeia.
Combinou com o lavrador Godinho, em levar o menino Tonho para o monte, onde iria guardar perus.
O Boa-Tarde ficou radiante, muito embora não lhe agradasse guardar perus.
Ali no monte teria a barriguinha cheia e ainda levaria alguma comida para o irmão mais novo, pois já se tinha apercebido que a senhora Aldonça Godinho, a madrinha como ele lhe chamava, gostava dele e ainda ficaria perto das vacas, agora com mais liberdade devido ao seu crescimento.
Como ele adorava ver o gado vacum a lavrar e como se divertia com a ladainha do carreiro para dirigir as vacas, enquanto lavravam.
Um dia não resistindo pediu para pegar na rabicha da charrua. O carreiro deixou-o pegar, mas a sua falta de força não permitia a continuidade do rego, tendo o carreiro pressionado, com a sua mão em cima da do Boa-tarde, a rabicha. Este ficou com a mão dorida e não mais quis lavrar.
O que ele adorava era tratar do gado vacum sobretudo da bezerrinha que lhe morrera a mãe. Delirava quando com a mão dentro de uma vasilha com leite, a bezerra chupando os seus dedos bebia o seu alimento.
Entre ele e a bezerra nascera uma espécie de amizade mútua. A bezerra, logo que solta ia ter com ele e brincavam os dois, ora saltando, ora correndo.
O tempo vai correndo e com ele ambos vão crescendo
O Boa-Tarde começou a pressentir que a bezerra ia ser vendida na feira de Janeiro, em Vila Viçosa. Uma estranha tristeza começasse a apoderar dele.
O filho mais novo do patrão o Zé, que fora padrinho de baptizo do Boa-Tarde, não com este nome mas com o de António Marono, explicou a razão da venda da bezerra e para contentá-lo ofereceu-lhe o serviço de ajuda de porcos, dando-lhe uma marranita, com poucos dias de idade.
O Boa-tarde depressa esqueceu a bezerrinha, pedindo para dormir na cabana, onde existiam compartimentos para porcos.
Em cima da parede divisória das pocilgas arranjou a cama, cujo enxergão feito de sacos de sarapilheira e cheios de palha de centeio, não precisava de colchão, nem de lençóis.
Dormia vestido e só nas noites mais frias de Inverno é que se cobria com um velho capote aguadeiro.
 Assim passou até aos dezasseis anos altura em que se sentiu capaz de governar sozinho.

O Boa-tarde deixa o monte do Godinho     
Ponderou durante algum tempo a sua saída do monte do tio Godinho.
O irmão mais novo Inácio, o Bom-Dia, depois de uma infância difícil, de pida, acrescida pela prematura morte do pai e que ele, Boa-Tarde se julgava no dever de auxiliar, tinha-se anexado no monte do Alvarinho, nos Orvalhos, onde se manteria até ir para a Guiné, combater os movimentos de libertação, em mil novecentos e sessenta e seis, onde fora condecorado.
Com efeito o Véstias de Borba, depois de uma demorada constipação, que resultou uma dupla pneumonia vem a morrer, num dia de violenta tempestade, debaixo do pontão nas curvas do Pego-longo.
O Boa-Tarde sofre o seu primeiro desgosto.
Testemunhos vivos, ainda da época, confidenciam-nos que ele, no seu sentido e dolorido pranto, não se cansava de dizer “ foi a corrente de ar e a grande molha que o matou”.
Com o dinheiro da venda da porca e dos porquinhos e com o pouco que amealhou da soldada, comprou uma burra, depois um carro de varais e logo que juntasse mais algum dinheiro compraria umas ovelhas.
Doloroso foi a ato de despedida do seu padrinho Zé Godinho.
Pela segunda vez na vida, o alegre e fascinante sorriso do Boa-Tarde não se viu nos seus lábios.
A sua hesitação do abalar do monte do Godinho foi vencida com esta frase do padrinho:
 - Segue a estrada da tua vida, se nela encontrares obstáculos, procura-me que eu te auxiliarei.
Dias depois confidenciaria o Boa-Tarde, a um amigo, “se não fosse a aquela frase do meu padrinho derramava muitas lágrimas”.

A antiga herdade de D. João
Diziam e ainda hoje se diz em Terena, que esta herdade fora dividida pela povoação de freguesia e tomara o nome de Coutada.
Este dito é atestado pela existência de pequenas courelas, encabeçadas por pequenas divisões chamadas sesmos.
Muitas pessoas, ou por terem saído da Terra, ou por incapacidade de arranjar as courelas, não as cultivavam, dando a pastagem sem nenhuma contrapartida ou em troca de um borrego.
Foi assim que o Boa-tarde se tornou pastor.
 Erigiu dois bardos na Coutada. Um perto das Hortinhas, outro perto de Terena, assim teria desculpa para praticar a transumância.
Para abeberar as ovelhas e a burra tinha a ribeira ou ainda podia usufruir de dois poços concelhios, o de Beja situado na herdade dos Barros, hoje com o acesso vedado e o das Alcaçarias perto da Vila de Terena além da fonte da Ferrenha, o sítio que lhe dava mais jeito.
Outra arte que nele se conheceu foi o de preparar cães para a caça nomeadamente para apanhar coelhos nas silvas e lebres na cama.
Aos cães era-lhes ensinado a andarem debaixo do carro da burra, aí se protegiam das chuvas e dormiam se não encontrassem melhor cama, porque com eles, além do comer, o Boa-Tarde pouco se preocupava. Nem com os cães nem com ele próprio. Dormia em qualquer lado. Um guarda-chuva grande para abrigo do vento e da chuva, um plástico por baixo e outro por cima para lhe servir de cama, sempre ao abrigo de um espesso carrasco.
Um dia o velho Chico Claré ofereceu-lhe uma choça, feita de estevas e piorno, já velha mas a que ele chamou de palácio.

O Boa-tarde e as meninas
Entre Vila Viçosa e o Redondo gerou-se uma disputa na área da sexualidade.
 As raparigas eram quase sempre as mesmas, uma semana estavam em Vila Viçosa, com um pseudónimo de, a espanhola, a francesa, a china e na semana seguinte no Redondo com outro nome a Lolita, a Arlete, a Chinesa e assim se iam governando e desgovernando quem delas se utiliza-se em demasia.
O Boa-Tarde, aqui com alguma cumplicidade do padrinho, estreou-se com a Lolita.
Não foi fácil esta estreia.
No seu asseio pessoal o rapaz deixava muito a desejar e o cheiro dos porcos, muito activo e difícil de eliminar, era factor de recusa das meninas e, apesar de pagar, por vezes, o custo da chapa, objecto que a troco de dinheiro permitia a entrada no quarto, onde estava a rapariga e o uso desta.
O padrinho achou neste acto, pagar e não ser servido, uma enorme injustiça.
Escutou a queixas do afilhado e resolveu falar com a patroa e a Lolita.
Para qualquer prostituta era, não só um triunfo fazer perder a virgindade a qualquer rapaz, mas também um divertimento com as suas reacções.
Com o Boa-Tarde era diferente por causa do maldito cheiro dos porcos.   
Pelo cativante sorriso e simpatia do rapaz, a Lolita condescendeu impondo uma condição:
- Levanto a saia, deito-me atravessada na cama e ele não me toca
Com a sua experiência no ofício sabia bem que o ato praticado pela primeira vez, duraria apenas breves segundos, ganharia o dinheiro e teria para sempre a gratidão do Boa-Tarde e do padrinho.
O cheiro do Boa-Tarde era surpresa para a ela que começara a relacionar com o Chico Maluco, natural da Malhada Alta e porqueiro no monte do Covão. Apesar das muitas relações sexuais com ele praticadas nunca sentira o cheiro que o Boa-Tarde deitava.
O Boa-tarde ficou feliz com o ato mas uma enorme confusão apoderou-se dele, a ponto de se julgar, mais uma vez, enganado e desejou de ir novamente às meninas.

Uma decisão acertada, senão milagrosa.
O Chico Maluco entendia-se, lindamente, com a Lolita quer na conversa, quer na cama.
Até então o Chico, por ser meio destrambelhado, nunca namorou, nem nenhuma rapariga o quis, encontrava na Lolita a compreensão e o carinho que nunca antes sentira.  
Uma crescente simpatia, que pouco a pouco os aproximava mais, ia-se tornando em paixão.
Por sua vez a Lolita estava saturada daquela vida que se assemelhava a uma prisão, por pouco sair à rua e quando saia, logo que reconhecida, era vexada e maltratada, além disto, no exercício da prostituição encontrava clientes que judiavam com ela, confundindo a virilidade com a brutalidade.
Exibia no seu corpo nódoas de beliscões provocados por clientes, que destituídos de qualquer cultura, pareciam julgar que estas mulheres não eram seus semelhantes.
A Lolita não hesitou, até porque já gostava do Chico, quando este, a medo lhe pediu para ir viver com ele.
Poucos dias depois estava no monte do Covão.
O porqueiro quando da capação dos porcos para a engorda, recorria ao Boa-Tarde.        
Eram necessárias três pessoas. Uma para apanhar o porco, outra para capá-lo e a terceira pessoa para o chapinhar com água e creolina, não fosse a ferida infectar-se ou ganhar bichos. A Lolita poderia ocupar-se desta última tarefa.
Ao fim de um mês a viverem na casa da malhada e depois de se irem conhecendo mutuamente, a Lolita conta ao Chico que este nome não é o dela e que se chama Conceição.
- Conceição - repetiu o Chico sem se impressionar e continuou.
- É a santa da minha Igreja há missa todos os primeiros Domingos do mês, às vezes vou lá, e todos os anos ajudo na Festa, - conclui com uma firmeza que impressionou a rapariga.
No primeiro domingo do mês de Fevereiro do ano de mil novecentos e cinquenta e sete, o Chico Maluco está com a rapariga a quem ele, carinhosamente, já considerava mulher, ajoelhado perante o altar de nossa Senhora da Conceição da Fonte Santa.
Tentou rezar - Ave Maria cheia de graça; Pai nosso que estais no Céu - era das orações o que sabia.
 Sentiu-se envergonhado.  Olhou para a Conceição e viu-a compenetrada em rezar.
Como não a queria deixar sozinha decidiu rezar à sua maneira.   
 Levantou a cabeça, procurou os olhos da imagem e desta forma diz:
 - Senhora da Conceição sabe que não sou maluco e não sou mau rapaz, nunca briguei, nem roubei nada a ninguém. Tenho ao meu lado a mulher que amo. Bem sei que a fui buscar a uma casa de p..., sucedeu.   Já olhei duas vezes para ela. Não tira os olhos de si. Deve estar a pedir perdão para os seus pecados. Não me importo com o passado dela., se assim fosse não a tinha ido lá buscar. Diga-lhe isto. O que me interessa é o dia de amanhã, o futuro e hoje já a tenho ao meu lado. - Olhou novamente para a Conceição que não pestanejava e de imediato para a Senhora e pensou - Se estiver a pedir perdão, perdoa-a, sempre é melhor.
Ao acabar a frase sentiu uma enorme sonolência. Fechou os olhos e baixo a cabeça.
Assim esteve até acabar a missa.
Ao ouvir, em voz suave - Francisco, Francisco - que ele julgou ser divina é que saiu aquele estado sonolento. 
 O casal Francisco e Conceição foi a admiração de todas as pessoas presentes na missa, gente das redondezas e os seus conhecidos da Malhada Alta.
O Jacinto, o seu maior amigo, até gritou de contente: - O Chico já deixou de ser maluco.
Todos sorriram e o casal não se deteve sem trocar, ali mesmo, um beijo amoroso, que a Conceição e o Francisco consideraram milagroso.

Um pedido satisfeito
A casa da horta tinha apenas um compartimento. Nele se cozinhava, nele se dormia.
Embora isso não afectasse a felicidade de ambos, o Francisco decidiu pedir ao patrão, um quarto e a cozinha no monte. Este raramente lá ia e tinha no Francisco uma confiança total, disse que sim. Podia servir-se de tudo o que existia na cozinha e das mobílias do quarto.
 - Só temos que comprar as roupas, podemos suportar esta despesa sem custo nenhum, - disse o Francisco com uma enorme satisfação à esposa e de um modo de quem via reconhecido o seu esforço e a sua abnegação.

 A grande surpresa do Boa-tarde.
A sua tendência em conhecer os locais onde o pai quando rapaz viveu, fê-lo ir até Borba, por ocasião da feira dos Santos. Aproximou-se da feira do gado muar e cavalar.
O seu aspecto de boa pessoa aliada ao seu sorriso e ao seu rosto tisnado pelo Sol, não passou despercebido Jaquim Cigano, que o convidou para seu auxiliar na venda de uma parelha de machos, que tinha a seu cargo.
Três notas de cem escudos foi a cortagem dada pelo cigano ao Boa-tarde.
 - Não faltarei a nenhuma feira, três notas de cem ganhas em tão pouco tempo.  Quantos dias tenho eu que andar atrás das ovelhas para fazer este dinheiro?   
Pensava o Boa-tarde com um desmedido entusiasmo a roçar uma ganância em si desconhecida.
Todos os anos o Chico Maluco chamava o Boa-tarde para o ajudar na capação dos porcos. O Boa-tarde depois de deixar tudo arrumado em relação às ovelhas, parte para o monte do Covão, a cavalo no carro de varais puxado pela burra e com o Bailarico, o cão. Sempre era mais um dinheirito que entrava.
Quando lá chegou o Chico, com um sorriso de contentamento diz para o amigo:
 - Já cá tenho uma mulher, amiguei-me.
 - Está a brincar comigo - disse incrédulo o Boa-tarde.
 A operação de capação dos porcos tinha sempre lugar depois do almoço.
 Prepararam os fios, deram um arranjo ao local da capação e afiaram a navalha. Tudo estava preparado para o começo da tarefa, quando uma voz feminina, clara e bem timbrada suou, ecoando o chamamento para o almoço.
A simplicidade do Boa-tarde tornou-se interrogativa. “O Chico diz que tem uma mulher e vamos almoçar na cozinha do monte”?
Ao entrar na cozinha pasmou de admiração, nunca tinha visto uma mesa tão bem composta  e cheia de comida, habituado que estava ao pão com morcela e toucinho, por vezes com azeitonas, embora na casa Godinho comesse à mesa com o lavrador.
Delicado como era esmerou, sem grande custo, um afável sorriso e falou à mulher.
 - Bom dia minha senhora - Bom dia - retribuiu a Conceição sem olhar para o convidado.
Sentados os três á mesa o Boa-tarde olha duas ou três vezes para a senhora, parece reconhecer nela a Lolita, mas como o Chico a tratava por Conceição ficara confuso.
O começo da obra começou com tudo a correr bem, embora a ideia de saber se rapariga era ou não a Lolita, não saísse da cabeça do Boa-tarde.
De repente lembrou-se que, mesmo com rapidez da prática do ato sexual com ela praticado, no Redondo, fixara uma grande nódoa na parte interior da coxa direita da rapariga. Para confirmar isso teria que levantar a saia à senhora e arriscar-se-ia a levar uma sova dela e do Chico.
- Nunca farei isso, - pensou receoso o convidado.
O último porco a capar mais possante e arrisco que o anterior, escapa-se aos dois homens e foge. O Chico vai ao celeiro buscar um caldeiro com favas para atrair o animal.
Sozinho com a Conceição ocorre-lhe a ideia o que o Estroino e o Matassa, um dia lhe disseram - uma relação com uma mulher não fica completa senão a beijarmos.
O Boa-tarde não perde tempo, tira da carteira três notas cuja efigie era o Pedro Nunes e diz:
- Tu és a Lolita deixa dar-te um beijo, - disse de rompante e sem medir as consequências.
Mal acabara a frase tem na cara uma violenta bofetada, mais forte que o safanão do porco fugitivo.- Porra, tem mais força que um homem - resmungou o visitante, que de imediato vai ajudar a apanhar o porco.
A Conceição tinha pedido perdão pelos seus atos, muito embora não se julgasse ser só a culpada.
A desarmonia conjugal onde fora criada e o seu abandono pelo pai aos quinze anos levou-a sair de casa.
Pensou que o rapaz de quem ela gostava e que muito lhe prometera, a levaria para sua casa. Puro engano. Depois de passarem alguns dias juntos abandonou-a.
Um homem muito mais velho que ela recolheu-a, durante algum tempo e a até ela engravidar.
Um calvário de maus tratos caiu sobre a Conceição.
Pensou que o aborto seria a saída possível para continuar sobre a protecção daquele homem que começava a odiar, mas que era ainda o seu único amparo. Mais um engano.  
Restou-lhe a prostituição mas sempre pensando que um dia o futuro surgiria.
Agora ali no monte do Covão, onde o azul do céu lhe parecia diferente, deixando brilhar o Sol com uma intensidade acolhedora, cujo prateado da Lua o secundava maravilhosamente e onde nos dias de Sol e nuvens adorava o encanto e as cores do arco-íris.
Ela tratava das galinhas, dos perus e dos patos. Brincava e corria com o cão. Sentava-se à soalheira com o gato enquanto costurava. Condoía-se do piar noturno das corujas e dos mochos, mas divertia-se e assustava-se com o voar rasante dos morcegos.
Estava a viver o sonho que ela no fundo sempre aspirara e que agora com o Francisco estava a tornar-se realidade, além disso julgava-se perdoada de todos os seus pecados e não seria agora o Boa-tarde que desmuraria todo este encanto.
O marido adorava-a e apreciava a sua comida sempre feita a tempo e a horas.
Tanto ela como o Francisco, depois de sentirem algumas hesitações nas pessoas, eram agora respeitados por quem os visitava, sobretudo pelos vizinhos mais próximos.
Num suspiro de alívio pensou - Serei, eternamente, fiel ao meu Francisco.
Este ato isolado de falta de respeito em nada belisca o nosso protagonista, será a única excepção pois não mais se ouvira uma palavra em desabono da personalidade do Boa-tarde.
         
A confissão do Boa-tarde
Regressado a Terena conta o sucedido no monte do Covão aos dois amigos. Estes para contentar o Boa-tarde e para ao mesmo tempo se satisfazerem e se divertirem prontificam-se a levá-lo às meninas de Elvas por altura das festas do São Mateus, advertindo que teria que pagar a despesa.
O nosso protagonista, levado sempre pela tendência que tem por Borba e arredores, trava conhecimento com um negociante, de Bencatel, de nome Xarila, a quem vende os borregos recebendo uma pequena parte do dinheiro, com a promessa de quando este os vendesse receberia o resto.
Havia dinheiro para a festa.
Começava-se adivinhar um futuro algo anormal até mesmo trágico na vida do Boa-tarde, acrescido por lhe morrerem três ovelhas com a doença súbita das sete sêmeas.
É chegado o dia de São Mateus, as maiores e as mais completas e vistosas festas da região e nelas revelamos a chegadas dos Pendões.
Nesse dia havia tolerância na fronteira e os habitantes da vizinha Badajoz enchiam as ruas da cidade de Elvas.
O Matassa e o Estroino levaram o Boa-tarde para a ribeira do Lucefécit e no pego da correntinha obrigaram-no a lavar-se, vencendo a resistência deste com a advertência que lhe poderia suceder o mesmo, que aconteceu no Redondo. Arranjaram-lhe calças e casaco, camisa e gravata. Calçado é que não conseguiram arranjar.
Ei-los em Elvas, em plena festa de São Mateus.  
Passada a preocupação dos três amigos em arranjarem alojamento, passearam despreocupados pelas ruas da cidade até à esperada casa das meninas. Depois destas contratadas e com um especial acautelamento com a que era destinada ao Boa-tarde, separaram-se para exercer o ato.
A casa estava cheia de clientes e um calor abafadíssimo instalou-se nos aposentos das raparigas, de tal modo que algumas, para se refrescarem, ligaram nos seus quartos as ventoinhas.
O Boa-tarde é convidado a entrar no quarto da prostituta, que de robe aberto refrescava e descansava um pouco o seu corpo, cansado de tanto ser usado naquele dia de Festa.
O nosso homem mirou-a de alto abaixo.
Contou depois - tinha as mamas aguçadas, bem pintada e sem nenhuma nódoa no corpo.
- Despe-te ordena a rapariga.
O Boa-tarde assim procedeu. Despiu-se primeiro da cintura para cima, depois baixou as calças e sentou-se num banco e descalça as botas, no momento em que o fluxo de ar emanado da ventoinha se fez sentir, espalhando pelo quarto as palhas saídas das botas.
- Sai daqui - gritou a rapariga furiosa.
 Estava ainda o Boa-tarde  a atacoar as botas quando chegaram os dois amigos, que logo se recriminaram por aquela imprecaução.
Positivamente a sorte era adversa ao Boa-tarde em íntimos relacionamentos com o sexo oposto.
Dizem as boas ou más-línguas que chegaram até aos nossos dias, e que muito honestamente julgamos exageradas, que o Tonho Boa-tarde deixou para os lados de Elvas, cerca de trezentas notas com retrato de Dona Maria.
Certo é quando chegou do São Mateus o dinheiro para pagar o táxi foi á conta.

A decadência do Boa-tarde
Sem dinheiro para sobreviver pensou em vender algumas ovelhas, mas estas não lhe faziam despesa e ainda vendia alguns borregos, não ao Xarila enquanto não lhe pagasse o resto, mas a outras pessoas, por ele julgadas, mais sérias.
Decidiu vender o cão, o Bailarico e assim fez. O cão agora bem tratado tornou-se o melhor cão de caça da freguesia de Terena. Consta-se que nas margens do Guadiana, na herdade da Defesa, apanhou nove coelhos seguidos.
O dinheiro do cão durou uma semana e pensou pedir dinheiro ao padrinho. Receoso não o fez, vindo a pedir a um sobrinho deste.
A sorte parecia abandoná-lo com a morte de mais quatro ovelhas, quando o Chavanquinhas lhe disse que o porqueiro do monte de Dom Pedro morrera. Não perde tempo e para lá se dirige ficando no lugar do porqueiro.
Vende o resto das ovelhas e o carro ficando só com a burra.
Não faz mais nenhuma feira e parece desgostoso.
 O seu sorriso já não tem a alegria de outrora e só a recupera quando algo lhe anima o coração.
Um dia o Xarila aparece na horta de Dom Pedro e dá-lhe o resto do dinheiro dos borregos.
 Já não via no Boa-tarde o mesmo sorriso e da conversa com ele travada notava-lhe, não só uma tristeza como um desejo de abandonar aqueles sítios. Promete que voltará para negociar o pluvial dos porcos, dizendo que talvez lhe possa arranjar novamente para pastor.
O Boa-tarde, embora não mostrasse muito entusiasmo, alegrou-se um pouco, por poder vir a trabalhar perto do sítio onde o pai nascera.
Sentia por aqueles sítios uma atração esquisita, que aumentava com a idade e parecia tornar-se mórbida.
Um dia tem a surpresa da visita do padrinho.

O pagamento das dívidas
 O sobrinho do Zé Godinho sentindo algum receio do pagamento da dívida pelo Boa-tarde, vai com o tio ao monte de Dom Pedro para falar com este.
Lá chegados o sitiado abrindo o sorriso que o notabilizara e, por ter achado o momento de saldar a dívida, sobe a uma azinheira, tira para sanar aquele empréstimo, o dinheiro que tinha escondido num toco da árvore, dizendo com uma satisfação que rapidamente se esfumou.
- Sei porque vieram cá. Já tenho o dinheiro guardado há algum tempo.  Ando com medo de sair daqui, talvez não mais volte à aldeia e a Terena.
 A frase comoveu e intrigou os dois visitantes.
 Em todas as recolhas que fizemos não se constou que o Boa-tarde ficasse a dever fosse o que fosse a alguém.
O relato que a agora vos dou conhecimento é comovente.
O nosso protagonista viu-se um dia necessitado de dinheiro e resolveu pedir cinco mil escudos a um familiar. Este pensando que o dinheiro seria gasto com mulheres, apenas lhe emprestou três mil, advertindo-o se o gastasse com as prostitutas não mais lhe falaria.   
Com os olhos humedecidos aceitou o dinheiro, dizendo, categoricamente, que todo o dinheiro que pedira emprestado nunca seria gasto com mulheres, nem mal gasto.
Ao fim de um mês e dois dias envia os três mil escudos por um portador.  

As acusações contra o do Boa-tarde
Na herdade do Baldio vemos o nosso protagonista novamente em pastor de um rebanho de setenta ovelhas.
Tinha junto ao bardo uma pequena casa com chaminé, que lhe servia também de quarto.
Desde que saíra de casa dos pais e do monte do tio Godinho nunca tivera tanto conforto, apesar de se sentir bem quando estava dentro da choça que o tio Chico Claré lhe oferecera.
Já tinha ensinado dois cães a caçar que lhe faziam companhia e lhe apanhavam coelhos auxiliando-o na guarda do gado, além disso ainda conservava a burra que o transportava quando ia buscar os víveres para a semana.
Todos os domingos se deslocava ao mercado de Borba.
Noticias dele chegadas às Hortinhas eram portadoras da sua felicidade, mas quem com ele convivesse mais de perto e lhe ganhasse a confiança notar-lhe-ia uma interior e escondida tristeza, que parecia adivinhar um fim trágico.
De bondoso que era nunca combinara soldada com os patrões, dando-lhe estes praticamente o que queriam, além da comida.
Trinta borregos foram roubados do rebanho que estava à guarda do Boa-tarde, sem que este o conseguisse evitar. Desgostoso e acusado de negligência, abandona a herdade, levando com ele o pluvial.    
Constrói uma cabana nos olivais, entre Bencatel e Borba e anda de mal andar com as suas ovelhas.
Alguns proprietários perseguem-no outros toleram-no, o que faz aumentar a sua tristeza.  O dono do rebanho faz queixa do Boa-tarde, à guarda nacional republicana de vila Viçosa alegando, não só conivência no roubo dos borregos mas também de negação de uma dívida de dezoito mil escudos emprestados ao Boa-tarde.
Nunca o nosso protagonista se vira confrontado com tamanha acusação, considerada por ele a maior afronta da sua vida.
Nem a ida a Elvas, que o deixou sem dinheiro o desmoralizou tanto como estas acusações.
Nunca ninguém o tinha considerado ladrão como agora este patrão. Tinha confiado nele como nos outros e não combinou a soldada.
Despedido e sem acerto de contas está ferido, não fisicamente mas na sua alma, no sentimento que o Homem tem de melhor, o seu caracter, a sua honestidade. 
Pensou em pedir socorro e lembrou-se do pai. - Se fosse vivo defender-me-ia.
Pensou no padrinho que o socorrera nalgumas situações, mas nesta era diferente.
Era acusado de roubo e também ele poderia não o acreditar, além disse também era lavrador. E por aqui se ficou.
Todos estes pensamentos surgiam, em desmedida avalanche, na cabeça do Boa-tarde, acrescidos, se decidisse ir falar com o padrinho teria que passar por Terena e aí poderia encontrar alguém que já soubesse do caso, que junto ao ato de Elvas daria azo a severas criticas.
Estas acusações atormentaram-no dia e noite. Dir-se-ia que estava num beco sem saída.

A estranha morte do Boa-tarde
Pensou, pensou muito, e um dia, de madrugada, ainda a coberto da noite tomou coragem e meteu-se a caminho de Terena, acompanhado dos seus dois cães, que ele considerava os seus únicos amigos.
Ia disposto a falar com o Matassa ou com Estroino, talvez eles com mais experiência de vida o auxiliassem.
Para trás ficou a sua choça e o que ainda restava das suas adoráveis ovelhas. Pensou na burra e conformou-se julgando que esta era capaz de se governar sozinha.
Um desbobinar de recordações acompanhava-o, fazendo-o reflectir e que ia minando cada vez mais, o seu abalado e atormentado espírito.
Sentiu sede, só sede porque a fome há muito que o não atormentava.
Aqui e ali tropeçava caindo muitas vezes. Os cães compreendendo o estado débil do dono não se afastavam dele, esperando sempre que ele se erguesse.
O Boa-tarde comove-se ao sentir a compreensão dos animais, únicos seres que no seu fraco e já doentio discernimento estavam com ele.
Pendurado do seu cinto está o seu inseparável cocho de cortiça feito, que um dia na Festa dos Prazeres, a maior romaria do Concelho, o Parrança, habilidoso artesão de Terena lhe oferecera.
Chegado à Fonte das Freiras tenta, sem conseguir, tirar o cocho do cinto. A serena água do tanque reflecte a sua imagem, contrastando com a turbulenta agitação que ia no interior do Boa-tarde. Este parece ver-se a um espelho, onde raramente se via. No seu atormentado estado psíquico não se reconhece. Vê a imagem multiplicar-se, com gestos acusadores.
- Foste tu, Boa-tarde, foste tu.
 O nosso homem tenta fugir daquele lugar mentiroso e maldito.
 Fugir daquelas pessoas que o estavam a acusar sem procurarem o conhecimento da verdade, daqueles juízes que sem conhecimento de causa, arrastados por interesses individuais ou partidários, ditam a sua sentença condenando os inocentes. - Não, - grita o Boa-tarde.
Nunca aquele tranquilo vale foi agitado com tamanho estrondo. Não houve em nenhum inverno, que se tivesse conhecimento, ribombar de trovão que o superasse.
O eco fez dançar as telhas do Monte do Pomarinho.
O Boa-tarde, movido por uma força que julgou divina, parte em correria desenfreada, perante a surpresa dos seus fiéis companheiros, os cães, que atónicos tardiamente arrancaram no seu encalce.
Chegados ao olival do Mariano Albardeiro deparam com o dono pendurado, por um arame de fardo de palha, de uma das pernadas mestra da única oliveira cordovil.   
Firmes nas suas patas traseiras esperam, por momentos, a queda do Boa-tarde, mas logo verificaram essa impossibilidade.
O mais rápido parte, em ladrar desesperante, a caminho do monte onde o Manuel do Pomarinho, já na rua tenta perceber aquela agitação. O cão ao avistá-lo aumenta e modifica o seu ladrar, tentando dar a conhecer a sua aflição, com pequenas corridas de vai vem, logo compreendidas pelo caseiro.
Contou este mais tarde que encontrou no Boa-tarde o mesmo sorriso de sempre, de menino bondoso, gentil e respeitador.
Murmúrios de incrédula indignação correram todo o concelho de Alandroal, duplamente avalizados pela quantia de dinheiro, vinte e oito mil e quinhentos escudos, encontrados, após a sua morte, na carteira do Boa-tarde e, pelo seu elevado grau de seriedade.  
Os receios da dona Aldonça Godinho, a madrinha, assim como a preocupação do seu pai, o Véstias de Borba, concretizaram-se.
A sua morte foi uma surpresa, pois ninguém com quem trocámos impressões a seu respeito se convenceu que o Boa-tarde, pela sua vivência de homem honesto e bondoso, embora sem preocupações, fosse capaz de semelhante ato.
A verdade da sua morte morreu com ele.
Das pesquisas que fizemos em Bencatel, tivemos a sorte de encontrar uma pessoa que com ele trabalhou na herdade do Baldio, que nos confirmou tudo aquilo que já sabíamos, acrescentando que o Boa-tarde era boa pessoa e nunca exigia nada dos patrões, - trabalhava só pela comida, - disse-nos, com uma voz comovente e saudosa de quem recorda um homem bom e um excelente companheiro. 
Para nós limitamo-nos a relatar a sua história e a homenagear este bondoso, sério e despretensioso homem, sempre sorridente, amigo do seu amigo, que viveu à sua maneira, sem exigências de espécie alguma. 
Concluímos pelos testemunhos que alcançámos que o Boa-tarde viveu ao sabor do imprevisto, da aventura e da Natureza, tirando desta a maior parte do seu parco sustento, que nos levou a compará-lo a um homem sem rumo, um feliz errante, não merecedor daquele fim.

Helder Salgado.
14-04-2013.