Thursday, April 26, 2012

A HISTÓRIA DA FAMÍLIA TIRA PICOS


Introdução Tira Picos
 Baseado em factos reais vividos por personagens do Alandroal, outros nem tanto, (apenas fruto da imaginação do autor) pretende-se  apenas homenagear personagens do dia a dia que deixaram marcas no Alandroal. Nunca com qualquer pretensão de ofender seja quem for, e muito menos ser considerada como algo de válido no campo da escrita.
Chico Manuel

 PRÓLOGO  
  Se chegarem ao Alandroal e perguntarem pelo Sr. Barnabé da Silva Carrilho Soares, certamente ninguém saberá dizer de quem se trata. Mas, se conhecem o TIRA-PICOS, dizem-lhe logo: ah... o que está casado com a PARDALEIRA.
O TIRA-PICOS é uma daquelas figuras típicas, tão vulgares em cada terra, que são conhecidas, quer pelos seus feitos, quer pela maneira como sabem integrar-se no dia a dia da terra onde habitam.
Não quis o Criador dotá-lo de grande inteligência, mas em contrapartida, talvez devido às dificuldades que passou durante a infância, criou uma espécie de carapaça que sempre o foi protegendo das “armadilhas “ que a vida tece.
O seu nascimento foi logo um acontecimento muito comentado na Vila. Nasceu no mês de Dezembro, e de cabeça aberta. Vejam lá que oito dias antes do parto, a mãe foi ao quintal carregar um madeiro para o lume, mas com tamanha falta de jeito, que encostou o madeiro à proeminente barriga, e, dizem as más-línguas que abriu a cabeça ao feto. De tal maneira que segundo a Parteira, o “menino” deixaria este mundo, antes do pôr-do-sol.
Logo ali, o TIRA-PICOS mostrou que não ia nas conversas dos outros, e, embora ficasse com a cabeça parecida com uma rampa de skait, o certo é que sobreviveu, e goza ainda de excelente saúde.
Teve uma infância como todos os outros da sua idade, pese embora que quando as “brincas” eram touradas, ele fosse sempre o boi, assim como no “jogo da bola” fosse sempre o guarda-redes. No entanto se fosse a “ir aos ninhos”, “apanhar pássaros” ou “ir roubar uvas” não havia quem lhe levasse a melhor.
Demorou seis anos para tirar a quarta classe...mas o certo é que a tirou.
Pouco lhe valeu...pois todos os empregos tentados nenhum deu certo. Experimentou ser empregado de balcão na loja do Custódio, mas não deu certo, pois quando lhe pediram “uma quarta de sabão” foi buscar um cântaro que encheu de sabão, e o pior é que quando um dia viu a filha do patrão no confessionário do Padre Estêvão, foi avisar o dito que a filha andava a espreitar o Padre quando ia mijar. Foi despedido...
Tentou a Guarda.... Mas quando do exame escrito, a pergunta indagava três cidades do Alentejo, e qual a capital, o amigo TIRA –PICOS responde: Estremoz, Borba e Vila Viçosa, e a capital Alandroal.
Ainda experimentou ser Carteiro, e até se ia safando, com a ajuda dos conterrâneos, enquanto se limitou ao Alandroal, o pior foi que um dia foi fazer serviço a Estremoz, e no Bairro da Cruz Vermelha, perguntou a uma Cigana se conhecia Fulana, e a Cigana se prontificou a levar todo o correio para o bairro... que ela entregava. Ainda hoje as pessoas estão esperando pelas cartas. Constitui mistério para muita gente como é que o TIRA-PICOS, conseguiu “puxar” namoro à Maria Amélia, moçoila bem apessoada, que vivia com seus pais no Monte da Bujarda lá para as bandas de Pardais.
Certo é que após várias peripécias, que futuramente irei contar o TIRA-PICOS, namorou, casou e teve filhos, e lá se vai safando....

 O NAMORO 
 Afinal foi numa “aceifa”. Como os empregos tentados nenhum bateu certo, o amigo TIRA-PICOS não teve outro remédio senão deitar mãos ao trabalho “do campo”.
Foi assim que foi fazer uma “aceifa” para o Monte das Bujardas, e lá travou conhecimento com a Maria Amélia, filha do Patrão, pouco mais esperta que o nosso amigo, mas reinadia e sempre pronta para a brincadeira.
“Eles” lá se entenderam e passada uma semana eram já frequentes os encontros no palheiro do monte.
Certa noite, desconfiado dos barulhos que provinham do palheiro o patrão e pai da Maria Amélia, resolveu investigar. Iria tudo correr bem, pois deram pela entrada do patrão e depressa se esconderam, no entanto, e quando o mesmo perguntou “quem está aí?” o amigo TIRA-PICOS, mais parecendo o Romeiro do Frei Luís de Sousa, resolveu responder “ não está cá ninguém!”. Bem... a Maria Amélia ainda fugiu, mas acertou contas lá em casa, o Tira – Picos levou tanta “bordoada” que no dia seguinte quando depois de despedido apareceu em casa parecia mais preto que branco, tais as nódoas que ostentava.
Mas... o namoro continuou, embora com os cuidados devidos, o que não obstou que certa noite fugindo pelos campos fora, era tal a correria que mergulhou de bico num pego da ribeira do Alcalati, sendo necessária a ajuda do futuro sogro para o retirar e não morrer afogado. Ou uma outra em que fugindo em louca correria se meteu no meio das vacas bravas do Caixeirinha, sendo obrigado a passar o resto da noite dependurado num chaparro, até que o moral viesse “tocar” o gado para outras bandas.
Cansado de tantos azares, e porque tudo tem o seu fim o TIRA-PICOS, teve que propor o Casamento. Ou antes o “Amiganço”, pois casamento os pais dela nunca iriam consentir.
Assim, ficou combinado que pelo São João a Maria Amélia, pela calada da noite escaparia de casa paterna e iria ter a casa dos pais do namorado, para consumação do acto.
Ela foi...mas as coisas não correram como esperado.....
Eu depois conto como foi...
 O AMIGANÇO - 1ª Tentativa
E assim foi. Pé ante pé, pela calada da noite, iludindo a vigilância paterna a Maria Amélia meteu pernas à estrada a foi caminho do Alandroal, para aquela que seria a sua noite de núpcias.
Mas era noite de S. João e havia as “fogueiras” na Rua de Santo António. Para ficar com a casa toda para si o TIRA-PICOS lá convenceu a família toda a ir ao bailarico, mais a mais que a acordeonista dessa noite iria ser acompanhada à bateria pelo Caiveirinha, que iria estriar uma aparelhagem nova.
Curioso o TIRA-PICOS foi dos primeiros a postar-se junto ao estrado do “toque” e a ficar fascinado por aquela coisa que se movia para baixo e para cima, e a qual ao bater uma na outra emanava um som tão bonito! Não descansou enquanto não “estudou bem” o funcionamento daquilo, e verificou que se movia consoante a pedalada dada pelo Caiveirinha. Eram pura e simplesmente os “pratos” da bateria movimentados pelo pé.
Resolvido a estragar o ritmo imposto pelo tocador, não esteve com meias medidas: meteu os dedos entre os pratos no preciso momento em que os mesmos faziam o movimento descendente. Bem... o sangue espirrou por tudo quanto era sítio e os dedos do TIRA-PICOS ficaram que nem fiambre no meio de uma tosta.
Pânico instalado, gritos e ais por todo o lado, e a família do desgraçado a caminho do Hospital de Évora onde passaram a noite.
Entretanto, à porta do TIRA-PICOS, esperava e desesperava a infeliz Maria Amélia e só quando a manhã começou a despontar e as pessoas a regressar a casa resolveu tomar o caminho de regresso.
Felizmente o pai havia saído cedo, e ninguém deu pela falta da Maria Amélia durante a noite no monte das Bujardas.
 O AMIGANÇO – 2ª tentativa
Logo que lhe foi possível o TIRA-PICOS, iludindo, mais uma vez a vigilância paterna foi dar uma justificação à MARIA AMÉLIA dos motivos do fracasso do plano.
O amor tudo perdoa e a MARIA AMÉLIA foi facilmente convencida a repetir a proeza, mais a mais que o “brutamontes” do pai nem sequer se tinha apercebido da sua fuga. Mas impôs uma condição: Agora só aceitava “juntar-se” se tivesse casa própria. E não é que o TIRA-PICOS arranjou mesmo uma casita lá para os lados do bairro das “AVESPERAS”! E até fez chegar à namorada uma chave da casa?
Foi acordado que na noite de S. Pedro (já que não havia sido na noite de S. João) por volta da meia-noite a MARIA AMÉLIA, iria ter à sua nova casita, onde o TIRA – PICOS a esperava.
Só que era noite de S. Pedro, e voltava a haver “fogueiras” e enquanto não era meia-noite o nosso amigo foi dar uma volta ao bailarico. Só que desta vez não se chegou tão pouco ao pé do “toque”, preferindo ir “encostar-se “ ao bar. A aventura passada no bailarico anterior, era motivo de conversas e o nosso amigo, teve que repetir vezes sem conta como as coisas tinham acontecido, e “cravando” uma cervejita cada vez que repetia a história. Foram tantas que passou a meia-noite, a uma, as duas... até que o TIRA PICOS ficou a dormir encostado a uma mesa.
Só acordou quando o amigo Badalico o despertou, para lhe dar os parabéns.
Parabéns? Porquê? Ainda estás a gozar? Parabéns pelo casamento, homem! A moça de Pardais, está desde as onze horas, na tua nova casa!!! “Amigas-te” e não dizes nada aos amigos!!!
O TIRA-PICOS ainda foi a correr para casa.... mas a prometida, mais uma vez desiludida, já tinha  regressado ao monte das Bujardas.
Só que desta vez... o pai estava já acordado.
O AMIGANÇO – À TERCEIRA FOI DE VEZ
Ainda tentou a pobre Maria Amélia, desculpar-se dizendo que tinha ido dormir a casa da sua amiga Genoveva, mas a “coisa” não deu certo pois foi logo onde o pai a foi procurar, quando pela manhã a dita não compareceu para o ordenho das vacas e tratamento das galinhas. A “sova” foi inevitável e a seguir a proibição de sair do Monte.
O Tira-Picos, desesperava, e maldizia aquela maldita “sigueira” que tinha pela “buìda”, que deitou tudo a perder naquela maldita noite de S. Pedro. E da “prometida”... NADA. Nunca mais chegou à fala com a sua amada, pois a vigilância paterna não dava qualquer hipótese.
Até que certo dia, lhe apareceu a Genoveva com uma mensagem da Maria Amélia que lhe pedia para a ir buscar no Sábado seguinte logo pela manhã à porta do Monte.
NÃO HOUVE OUTRO REMÉDIO....
O que a “pobre” desconfiava teve confirmação ao fim de um mês. Estava “AMANHADA”!
Ainda desabafou com a amiga Genoveva, que lhe disse que tinha lido num papel que iria estar no Alcalati um barco com um nome estrangeiro e que fazia “DESMANCHOS”...mas por azar o Presidente da Junta aconselhado pelo Senhor Prior, não deixou o barco atracar no ribeiro, e desmanchos só em Évora, e por sinal bastante caros...pelo que não houve outro remédio senão “JUNTAR-SE”.
O nosso amigo é que rejubilou com a novidade, e não perdeu tempo... sabia que Sábado era dia de mercado em Vila Viçosa. Que os futuros sogros “marchavam” logo pela manhã para o dito cujo. Não perdeu tempo...pediu ao Sinfróneo a “motorizada” e ala que ele aí vai buscar a Maria Amélia ao Monte das Bujardas.
Ao subir a ladeira das “Bispas”, ainda perdeu a “noiva”, mas antes da entrada triunfal na sua nova casa, teve tempo de voltar atrás e “montar” (na bicicleta, claro) a sua, agora mulher.
A partir dessa altura a Maria Amélia, do Monte das Bujardas, em Pardais, deixou de ser a Maria Amélia para passar a ser a PARDALEIRA, mulher do TIRA-PICOS.
A PRIMEIRA ZARAGATA
 Quanto mais a gente as guarda pior. Dizia o pai.
Olha a sonsinha, parecia que não quebrava um prato, e vejam lá. Diziam as vizinhas
É bem feito. Então o que queriam? Com um pai daqueles!!!
Ela já está mas é “prenha”.Diziam os mais espertos.
Certo é que o casal já estava a usufruir da “comunhão de bens” há um mês, e “trambolhão” daqui “trambolhão” dali lá se iam safando. Mais a mais que o Tira-Picos, parecia agora ter mais juízo, pois as idas à taberna tornaram-se menos frequentes e até tinha arranjado um “trabalhinho”, a colocar “fundos de buinho” em cadeiras de madeira e o Ceguinho Zé Rita tinha-lhe prometido ensinar a fazer cestos de verga. Trabalhos sentados, pois claro, pois dobrar o espinhaço era coisa que fazia comichões ao Tira Picos.
Vejam lá que o amigo Maçaneta, até o tinha convencido a ir para a música, pois ser da Banda sempre dava um certo prestígio: corriam-se as Festas todas, e ainda se ganhavam umas massas.
Enfim tudo corria pelo melhor, até que houve um baile na Sociedade da Musica, e onde o nosso amigo fazia questão de marcar presença, não só para mostrar que também ele já tinha mulher, como também para ficarem a saber que de futuro ele seria mais um elemento da Banda, e como tal com direitos adquiridos.
Ao almoço a Pardaleira disse ao marido que para ir ao baile teria que arranjar o cabelo (fazer uma permanente), o que bem vistas as coisas até se tornava necessário, e o Tira-Picos concordou. Só não esperava é que chegada a hora da janta, de Maria Amélia... nada. Oito, nove e quase dez quando, o “espantalho” no dizer do Tira Picos se apresentou, e ainda por cima depois de alguns “berros” lhe comunicou que a modificação visual tinha custado 40 mil réis. Precisamente o dinheiro que tinha feito nesse dia com a colocação de fundos nas cadeiras, e que ele esperava “esturrar” no “emborque” de umas minis no baile. Mas o pior ainda estava para vir quando a Maria Amélia lhe comunicou que tinha que pôr uma gravata, caso contrário não iria ao baile. Era o que faltava...as “arreatas” são para os burros, e se nunca ninguém me obrigou a coisa que eu não quisesse fazer não és agora tu que me obrigas a andar amarrado. Se não queres ir não vais...mas eu vou, e num acesso de fúria atira-se às “gadelhas”da mulher, e estraga-lhe o penteado, não ficando ele melhor pois a camisa foi ao ar!
Foram ao baile...ela de gorro enfiado no “toutiço” e ele sem camisa.
 Na Banda
Tantas foram as “arremetida” do amigo Maçaneta, para que o Tira - Picos fosse para a Banda, que lá o convenceu  um dia a se apresentar ao Mestre Mendes, para ingressar na Banda. Aquilo até não era estranho para ele, pois em pequeno, o Pai quis que ele fosse aprender música, só que a brincadeira e a vadiagem falaram mais alto e o nosso amigo não passou do dó.
Ora se em novo não passou do dó, agora não passava do ré, e ao fim de alguns meses, como se veio a verificar que não dava uma para a caixa, mais por descargo de consciência o Maestro distribuiu-lhe a caixa, pois rufar já ele sabia. Só que marchar e acompanhar outras músicas “está quieto”, o que deu azo a que outros músicos, como o Cachacita, começassem a protestar, o que criou um mau estar, que aos poucos ia destabilizando a Banda.
A primeira saída deu-se na alvorada do 1º de Dezembro, e logo aí se viu que as coisas não iam correr a contento, pois como o Tira-Picos não acertava o compasso, a marcha era frequentemente interrompida, não restando ao Maestro senão ordenar: “rufa Tira Picos”. Até passar pela sua casa e ser visto pela sua “Pardaleira” o Tira-Picos rufou, mas depois virou-se para o Mestre e disse: só continuo a rufar se tocar a Banda, pois não estou para ser só eu a trabalhar e outros ganharem o dinheiro. Quem não gostou, e com razão foi o Cachacita, que logo ali ultimou: ou eu ou esse nabo. Ora se era coisa que o Tira-Picos não gostava era que lhe chamassem “nomes” e logo ali a caixa se foi enfeixar na “ marmita “do Cachacita, enquanto o bombo foi servir de cachecol ao mestre Ambrósio e até a tuba do Colunas serviu de barrete ao Tira – Picos, que berrando “isto não fica assim”, meteu a primeira e desandou para casa, não sem que antes o Saloio lhe tenha “berrado” “há pois não, agora incha”.
No rescaldo dos acontecimentos, foram cinco os elementos que abandonaram a Banda, mas o Tira –Picos , esse continuou.... mas não por muito tempo....
 O FIM DO SONHO NA BANDA
 Bem ou mal, o Tira-Picos, lá se foi aguentando como elemento da Banda, lá se foi acostumando a “tocar caixa” mais ou menos, e lá ia correndo as Festas todas, à custa da Banda. A mulher lá lhe aviava os “comes e bebes”, e volta e meia lá aparecia nas Festas para apoiar o seu marido, e embasbacar-se com o seu aprumo quando marchava. E então nas Procissões! Toda ela se “babava” quando ele acompanhava a cadência dos passos dos fiéis enquanto a Banda criava novo fôlego. Até os sogros já se deslocavam, para acompanharem o genro, naquelas Festas circunvizinhas. E depois sempre entravam mais uns tostões para o orçamento familiar, pois o negócio de deitar fundos nas cadeiras ia de mal a pior.
Enfim, tudo corria pelo melhor até que a Banda foi contratada, por dois dias, para fazer a Festa de S. Brás. Na altura e devido há falta de transporte era hábito os elementos da Banda pernoitarem na localidade onde iam actuar, e como era de Verão levavam umas mantas e estendiam-se por ali. Só que durante a noite arrefeceu, e o Tira-Picos viu na Igreja um bom local para”ferrar o galho”. Começou por dependurar o boné na cabeça do Santo, depois vestiu-lhe o casaco, achou graça e vestiu-lhe as calças. Parecia um músico a sério. Não esteve com meias medidas Pôs-lhe a caixa a tiracolo, e as baquetas nas mãos. Riu-se da sua graça, e ferrou o sono num dos bancos da Igreja.
Aglomeravam-se os fiéis à porta da Igreja, para assistirem à Santa Missa e depois à Procissão do seu Padroeiro, quando o Padre abre a porta da Igreja e dá com aquela cena!
A indignação foi geral, e quando assim é, todos são culpados. A banda foi logo devolvida ao remetente, não sem antes alguns músicos sentirem na pele a fúria de uma população indignada.
Perante tal façanha o Tira – Picos foi de imediato suspenso das suas funções, e marcada uma Assembleia-geral com o fim de ditar a expulsão definitiva do Tira – Picos da Sociedade da Música.
Quem não achou graça foi a Pardaleira que não deixou passar a oportunidade para lhe “xingar” os miolos, até porque o tempo que passava na Música não a estava a “moer” além de que o dinheirinho dos serviços sempre dava uma ajuda!!!
Ao fim e ao cabo quem pagou “as favas” foi a mulher, e assim se somou mais uma “briga” no casal.
 A Assembleia-Geral
 O salão estava à cunha...todos queriam saber o desfecho da causa porque a Banda tinha sido “corrida” da Festa do senhor S. Brás, e os motivos porque o Tira-Picos, era acusado de causar o descrédito da Filarmónica.
O Tira-Picos havia sido convocado, por carta, registada e com aviso de recepção para estar presente. Fez questão de se fazer acompanhar pela sua cara-metade D. Pardaleira que embora a contra gosto não deixou de acompanhar o seu mais que tudo.
Quando chegaram todos os lugares sentados estavam já ocupados, e logo na primeira fila muito senhor dos seus pergaminhos como elemento imprescindível da Banda estava o Cachacita, ódio de estimação desde o princípio, das lides filarmónicas do Tira-Picos
Há aqui Sócios que estão sentados, e não são Sócios, e Sócios que são Sócios e estão de pé” sentenciou o Tira-Picos numa indirecta ao Cachacita, que embora elemento da Banda e devido ao seu estatuto de “imprescindível” estava isento do pagamento de cotas. E há músicos que em vez de tocar zurram, respondeu o visado...seu malcriado, não vê que está aqui uma mulher casada e ainda por cima em estado interessante e não é capaz de lhe dar um “assento”? Ninguém a mandou cá vir... isto é para homens...não é para mulheres.
Aselha de merda, nem habilidade teve para casar...até duvido se não será...?
Sou solteiro, mas com mais prática de casado do que tu, merda seca.
Esta é que não “calhou “ bem no ouvido do Tira Picos, que relacionou a resposta como uma insinuação ao comportamento da sua esposa, e vai daí... o que estava mais à mão era o quadro do Senhor Presidente da Direcção... Serviu de colar ao Cachacita.
Não houve mais Assembleia-geral... houve isso sim um arraial de porrada, que só terminou quando as forças da autoridade intervieram.
O Tira-Picos foi posto na rua, e obrigado a pagar os estragos causados... Nunca pagou e volta e meia estava pregado na Sociedade da Música.
Em Casa dos Sogros
Escusado será dizer que todas as façanhas protagonizadas pelo Tira-Picos chegavam ao conhecimento dos pais da Pardaleira, que com grande mágoa iam constatando o “embrulho” em que a sua filha se tinha metido. Tudo isto “mexia” com o bondoso coração de D. Pulquéria, que a toda a hora lamentava o “mau passo” dado pela filha.
Não pode ser, temos que fazer alguma coisa, eles não podem continuar a viver assim, lamentava-se a Senhora!
Deixa-a estar, ninguém a mandou não ter cabeça. É bem feito, uma magana daquelas, que nunca lhe faltou nada...
Bem... as mulheres conseguem tudo, quando querem, e por fim D. Pulquéria lá convenceu o marido a dar guarida ao casalinho.
O Tira-Picos, ao princípio ainda se mostrou renitente, mas como os amigos não lhe perdoavam, aquela de fazer do quadro do Presidente da Direcção um colar para o pescoço do Cachacita, e nem já sequer tinha um amigo para beber um copo, além de que a vida cada vez se tornava mais difícil... lá acedeu a passar uma temporada no Monte das Bujardas.
Ainda que o sogro não lhe mostrasse os dentes, e a conversa entre os dois fosse como a “lavoura dos burros”, sempre enviusada, D. Pulquéria lá deitava água na fervura, e o Tira-Picos lá ia “enchendo a mula”, dormindo boas sestas, e fumando umas cigarradas. Até que um dia, (há dias em que um homem não devia levantar o coirão da cama), depois do almoço, e querendo ser prestável o Tira-Picos, prontificou-se a ir levar as cascas da melancia, devidamente migadas, ao galinheiro, onde coabitavam as galinhas, os coelhos e os pombos. Foi a perdições... a porta ficou aberta... os coelhos marcharam todos, os pombos foram um regalo para os caçadores... e as galinhas acharam um bom “entretém” debicando na horta, onde tudo foi ao ar, desde os alhos ás alfaces e até o canteiro dos temperos não escapou.
Ficou “bruto” o dono da casa. Sentado ao lume quando a esposa lhe perguntou o que se fazia para a janta: sei lá...vai lá ver se ainda se aproveitam alguns espinafres.
Eu vou... sentenciou o Tira-Picos
E foi...
Voltou com uma braçada de espinafres, que nem precisaram de ser arrancados, pois as galinhas já se tinham encarregado de tal.
Onde quer que ponhas os “pinafres”?
Se calhar aqui no lume! Diz o sogro.
Ora não foi tarde, nem foi cedo... espinafres para o meio das labaredas, que já se faz tarde!
Malandro!!! Ponha-se na rua...não basta ter ficado sem a horta ainda faz pouco de mim!
RUA.
O Tira-Picos, foi... mas foi curtir as mágoas para a tasca do Pirolito...antes não fosse...
 PONTO FINAL NA ESTADIA EM CASA DOS SOGROS
 Se foi por ser parvo, ou se foi para fazer pouco do Sogro ainda hoje se está por saber o que levou o Tira-Picos a deitar os espinafres no lume. Certo é que a “coisa” não pareceu nada bem, e o Tira-Picos meteu o rabinho entre pernas e foi “curtir” uns “copos” na tasca do Pirolito.
Conversa puxa conversa, copo puxa copo, quando mal se descuidou estava com “uma “ de “caixão à cova”, a tal ponto que tiveram que ir levá-lo a casa, onde a esposa o esperava.
Deitaram-no no sofá que estava logo ali à mão, onde ficou a “curti-la”. Só que a “magana” era chorona, e o Tira-Picos desatou a chorar, de tal forma foi o “cagarim”, que conseguiu reunir o resto da família à sua volta.
E chorava... chorava a tal ponto que a Pardaleira muito pesarosa desabafa para a mãe: Coitado, está mesmo arrependido... não deixa de chorar.
Deixa-o chorar... quanto mais chora...menos mija. Responde o pai.
Não mija... mas é uma merda é que não mija...
E não esteve com meias medidas. Saca do “instrumento” e zabumba enfia-lhe uma valentíssima mijadela, mesmo diante dos sogros, deixando o sofá numa lástima.
Foi o ponto final, da estadia em casa dos sogros.
Ainda nessa mesma noite, palmilhou o caminho de regresso ao Alandroal, sem mesmo se dar conta porque tinha sido posto na rua.
Também a Pardaleira custou a perdoar-lhe tal desaforo só regressando a casa passado quinze dias... mas o amor é assim!!!
 O REGRESSO DA MULHER AMADA 
Tudo o que se passava com o Tira-Picos, nesta malfadada fase da sua vida ia sendo seguida pela sua Pardaleira, que no Monte das Bujardas ia cada vez mais deixando dissipar o mau estar provocado pela “mijadela”do seu mais que tudo, naquela triste noite em que foi afogar as mágoas na tasca do Pirolito.
Não podia, mais a mais sabendo, que após a última peripécia o mesmo havia sido “encanado”, deixá-lo ao abandono. Após uma conversa com a mãe, já que o pai estava difícil de domar lá conseguiu arranjar uns tostões, um farnel e regressou ao lar.
Entretanto o Tira-Picos, dado que o roubo não havia sido consumado, foi posto em liberdade.
Que alegria, quando chega a casa, e vê a sua mulher! Que alegria quando soube que alem dos “cobres” doados pela sogra, ainda havia um “arroz tostado” feito com a galinha que a esposa “acarinhou” no Monte e uma “canjinha”. Tal banquete merecia “uma pinga” , e o nosso homem foi buscar  na tasca do Sinfrónio uma “litrada”. Até resistiu a um copo que lhe ofereceram, mas ficaram-lhe nas narinas o cheiro dos caracóis que serviam de petisco.
Foi um regalo, depois da “janta” o serão passado em casa com a sua Pardaleira. Fez esquecer todas as necessidades porque havia passado. Havia que lhe dar a devida recompensa. Depois de dar voltas e mais voltas à cabeça acudiu-lhe o “cheirinho”dos caracóis. Pois é! Apanhar caracóis não é roubo e ele sabia bem que na Horta da Formiga havia muitos e por sinal grandes e bem gordos. Foi só a questão de arranjar um tacho, meter os caracóis lá dentro, chegar a casa e pô-los ao lume. Enquanto os caracóis coziam, foi beber um copo, mais que a esposa não estava em casa atarefada que estava nos cumprimentos às vizinhas.
Foi um desastre total...havia ranho por tudo quanto é sitio na cozinha...e os caracóis na medida em que a água ia aquecendo iam-se raspando pela casa toda e deixando o seu rasto pelas paredes. Até no quarto e na cama havia caracóis.
O pior é que a mãe da Pardaleira havia convencido o marido a irem visitar nessa noite a filha, e até era para jantarem lá....
A VISITA DOS SOGROS)
Bem se esforçaram para apagar os vestígios deixados pela fracassada cozedura dos caracóis, que deixaram rastos da sua presença por tudo quanto é sitio. E tanta esperanças que o Tira-Picos tinha em conquistar as boas graças do sogro oferecendo-lhe um petisco de caracóis. Sempre conheceu os “bichinhos” como sendo “mansos”, quem lhe havia de dizer que se “espantavam” de tal forma com o calor! E depois sabia ele lá que precisavam de ser lavados e que para serem consumidos tinham que levar tempero?
Pelo sol-posto lá se apresentaram os pais da Pardaleira, munidos de alguns mantimentos, que a extremosa mãe conduida pelo mau viver da sua filha sempre ia “acariando”. Até um bolo de alguidar tinha feito para levar à filha...
Quando chegaram estava a casa virada de pernas para o ar, e o casalinho atarefado à caça dos malditos caracóis que se haviam espalhado por todo o lado.
Mas...o que é isto? Sabe lá: caiu-me uma praga de caracóis em casa, que não consigo dar conta disto! Caracóis? Pois...isto deve ter sido por causa de umas couves que trouxe lá do Monte e que deixei no “poial dos cântaros”. Devem ter passado a noite “na pouca-vergonha” e agora resolveram passear pela casa toda.
Quem não ficou lá muito convencido foi o “velho” que viu logo que devia ter sido mais “alguma” daquele parvalhão. Até porque o cheiro que se espalhava pela casa não deixava margem para dúvidas.
 Logo ali pensou em dar de frosques e voltar para o Monte. Mas enfim, já que tinha ido para jantar e fazer “as pazes” com o genro, o melhor era esperar.
Decorria o jantar pelo melhor, o pai da Pardaleira até já tinha perguntado, como é que iam as coisas, quando a mãe começa a sentir uma coisa estranha e viscosa a subir-lhe pelas pernas. Habituada que estava a que a única coisa que lhe subia pelas pernas era a mão calejada do seu homem agora aquela coisa mole por aí acima fez-lhe dar cá um destes pulos que tudo o que estava em cima da mesa foi de “pantanas”.
Há velha dum cabrão agora entornou esta merda toda...lá se foi o jantar para o maneta, ainda por cima me queimou com o caldo.
Foi o ponto final na tentativa de reconciliação. De carro de praça regressaram ao Monte, e só mais tarde por altura do baptizado do Nelinho é que tentaram nova reconciliação.
Tudo por causa de um “abelhudo” caracol, que sabe Deus, com que intenção se preparava para se alojar, sabe Deus onde, na carcaça da mãe da Pardaleira.
Vá lá que no meio dos estragos ainda se safou o “bolo de alguidar” que serviu para consolo do casalinho.
SEM JEITO PARA ROUBAR
Ia de mal a pior a vida do Tira-Picos, estava como a lavoura dos burros, torta e enviusada, ou se quiserem sem tralho nem maravalho. Sem a mulher para lhe fazer as sopas e coser os trapinhos, sem trabalho, ainda por cima o negócio do fundo das cadeiras estava cada vez mais fraco, e por mais que o Ceguinho Zé Rita lhe ensinasse a fazer cestos de verga os mesmos nunca saiam capazes de ser transaccionados.
A fome apertava, o dinheiro escasseava, e como na infância era mestre a surripiar o alheio, o Tira-Picos não arranjou outra forma de enganar o estômago senão ir às hortas pilhar qualquer coisa.
A primeira tentativa foi na horta do Adelino, onde haviam duas figueiras, que dito por todos davam os melhores figos de S. João, no Alandroal. Foi fácil entrar na quinta, pois o portão estava sempre aberto, e mais fácil ainda comer a canastra de figos que o dono já tinha apanhado. Só que para o Tira-Picos uma canastra não chegou e ainda provou mais alguns colhidos da própria figueira. Foram dar com ele, com uma barriga inchada de palmo e meio, olhos esbugalhados e vomitado por tudo quanto é sitio. Quando no Hospital o Médico lhe perguntou o que tinha acontecido o Tira-Picos responde: Comi uma canastra de figos e mais uns oitenta, e comecei a ter uma leve dor de barriga, depois não me lembro.
As laranjas do João dos Pereiros eram das melhores: da baía, grandes e docinhas como mel. Só que para entrar na horta era um problema. O muro era alto e ainda por cima tinha cacos de vidro no cimo. Mas nessa noite o Seabra deixou o “carro da mula” encostado à parede, e de cima do carro era fácil saltar lá para dentro. Seria mesmo nessa noite, e nada melhor que trazer logo uma saca de laranjas. Se bem o pensou, melhor o fez. Só que o carro não estava travado e quando em cima dos taipais o Tira-Picos se preparava para saltar, o carro desliza e não teve outro remédio senão agarrar-se ao muro, cortar as mãos nos vidros, mas saltou lá para dentro, enquanto o carro se espatifava no muro em frente. Todo este “cagarim” despertou o dono. Deixou-o comer as laranjas até matar a fome, deixou-o encher o saco, mas depois, enquanto o Tira-Picos dava voltas à cabeça para encontrar maneira de se raspar, apareceu, e deu-se ao trabalho de lhe esfregar “nas trombas” as laranjas uma a uma. Na manhã seguinte o Tira-Picos, parecia, na voz da velha Amélia, uma alma do outro mundo, com os dedos entrapados e a cara toda inchada.
Estava visto: com fruta não se safava. Experimentou então galinhas. E como na horta do Zé Cuco, as mesmas depenicavam à vontade, e o muro não era alto viu uma maneira fácil de “pescar” galinhas. Bastou-lhe arranjar fio de coco, um anzol, pôr na ponta do mesmo uma fava e fazer o lançamento. Não demorou que uma caísse no engodo, e quando se preparava para engolir a fava, bastou um puxão e ela aí vem, asinhas a bater a caminho do pilha galinhas.
Azar dos azares...a guarda ia a passar e dá com aquele estrafego. Com que então a roubar galinhas? Raios partam isto. Estava a praticar para fazer uma boa pescaria amanhã na “rebêra” e a merda da galinha come-me o isco e ainda por cima dá cabo do anzol.
Nessa noite o Tira-Picos dormiu na cadeia, mas pelo menos teve um bom jantar e ainda por cima acompanhado por um copinho.
 TIRA-PICOS EM LISBOA
Gozava o nosso amigo a soalheira do Outono, refastelado num banco da Praça, quando passa o Presidente da Câmara e lhe diz: Tira-Picos, amanhã, logo pela manhã passa lá pela Câmara que eu preciso de falar contigo.
Má... Maria, para ser chamado à Câmara, coisa boa não era... Seria por causa dos caracóis que apanhou na Horta da Formiga? É que atrás dos caracóis sempre vieram uns marmelos, coisa pouca, só o suficiente para a sua Maria fazer umas “chávenazinhas”de marmelada. Mais até a pensar nela, porque era coisa a que ele não dava grande apreço.
 Nem dormiu...e logo pela manhã se apresentou no gabinete do Presidente. Afinal não era nada do que ele esperava...
Olha lá... a Câmara recebeu um convite para se fazer representar numa Feira de Artesanato, em Lisboa...e eu lembrei-me de ti. Queres ir?
Lá feira sabia ele o que era... pois além da de S. Bento, já tinha ido às de Vila Viçosa, e até à de Borba, e era “coisa” que gostava...mas artesanato? Que diabo é isso?
È... estares lá sentadinho, a pores fundos de buinho nas cadeiras, e depois de prontas podes vendê-las por bom preço. Vai lá falares com a tua mulher e amanhã vens cá dar a resposta.
Lá falou com a mulher, que até o incentivou a ir, mais a mais que estava no último mês de gravidez... gostava de ir ter a criança no Monte, ao pé da mãe...e depois quem sabe até vendesse umas cadeiras... pois no Alandroal já tudo estava servido no que diz respeito a tal material.
Mas antes, e na tasca do “Sinfrónio” ainda pediu conselho ao seu amigo “Maçaneta”, pois não fazia ideia de como chegar a Lisboa.
Isso é as menos... apanhas a “automotora” em Vila Viçosa, ficas mesmo no “Barrêro”, atravessas o “rebêro” no “vapor”, apanhas um “carro de aluguer” e pedes para te levarem lá... “aprovêta” homem... se não venderes as “cadêras”, pelo menos “vás a Lesbôa”.
E lá foi comunicar ao Presidente que sim senhor... iria lá à tal feira, e que faria as cadeiras que fossem preciso.
Levas aqui cinco contos, para comprares uns “atados de buinho”, eu já disse ao carpinteiro que fizesse as cadeiras e no Sábado uma camioneta vai levar-te a Vila Viçosa para apanhares o comboio. Quando lá chegares entregas esta carta ao homem da entrada e ele diz-te onde ficas, onde vais dormir e comer. As cadeiras que venderes o dinheiro é para ti... agora vê lá como te portas!!!
E assim foi... dez cadeiras sem fundo, três atados de buinho, comboio até ao Barreiro, Cacilheiro até ao Terreiro do Paço... e o mais difícil convencer um Táxi a levar a tralha. Mas conseguiu...só que quando o condutor perguntou para onde? O Tira-Picos: para a feira.
Pronto já cá estamos... passa para cá uma milhena, que já estás à porta da feira. Com o material à porta, quando entregou a carta ao porteiro... Homem isso não é aqui... aqui é a Feira Popular, tu queres ir é para a FIL.
PORRA... ainda agora cheguei, e já me estão a tramar...
 NA FEIRA DE ARTESANATO
Foi uma carga de trabalhos, para arranjar novo táxi, que quisesse transportar, o Tira-Picos, e a “tralha” que o acompanhava para o local certo. Teve que ser por “ajuste directo”, com o auxílio do Porteiro da Feira Popular e mesmo assim só com o desembolsar de duas de mil. Uma carga de trabalhos, que já fazia com que mal dissesse a hora em que tinha aceite tal proposta.
Mas lá conseguiu chegar ao destino certo, e após mostrar a carta do Presidente, deixou o “material” em sítio seguro, usufruiu de uma boa jantarada, e de uma confortável dormida, em colchão macio que até fez com que esquecesse a sua Maria.
 Tinha ordem de se apresentar às nove, para ter pelo menos duas cadeiras prontas, para quando a Exposição abrisse à tarde. E cumpriu.
Deram-lhe uma “casinha” e disseram-lhe: vá pondo fundos nas cadeiras, e quando alguém quiser comprar: venda.
Bem... o Tira-Picos nunca se tinha sentido tão feliz. Primeiro toda a gente, (e se havia gente), parava para ver a sua habilidade, depois nunca tinha visto tanta “cara bonita”, e se eram “jeitosas”... e as luzes que aquilo tinha! Razão tinha o Labumba, quando dizia que não havia nada como Lisboa! Ih...e como as cadeiras se vendiam... aquela gente devia ter mesmo o cu frio, e precisavam de fundos de buinho para aquecerem o rabo. Não é nada... logo no primeiro dia vendeu o material todo, o que valeu foi o homem encarregado da feira ter comunicado à Câmara para mandar mais... e mandou.
O melhor é mudar-me para Lisboa. Ainda foi perguntar ao homem que mandava se podia continuar o negócio ali...mas nada feito, Aquilo só funcionava por uns dias, depois o lugar era para outras coisas...
Tudo corria pelo melhor, e o Tira- Picos, já pensava ter tirado a “sorte grande”. Mas ao lado estava um galego, que passava o dia a “malhar” sola, fingindo estar a “deitar meias solas, tombas e viras”, em sapatos, mas que fazia um negocião a vender botas caneleiras.
Como eram vizinhos, tornaram-se amigos...e como ambos nunca tinham tido vida boa, e tão pouco se acharam alguma vez com umas notas, um dia diz o Galego: oh compadre... e se a gente esta noite fossemos às “maganas”? Atão não havemos de ir? Logo à noite depois do jantar, aluguemos um táxi e...vamos
E foram...
Coisa linda... o taxista deixou-os à porta de um bar. Nunca o Tira-Picos pensou que existisse tal coisa...a música era linda... só “tangues”, as mesas para se sentarem todas bem compostas, com toalhas e tudo, a luz era de muitas cores, mas aquilo parecia tudo vermelho, e até mudavam para outras cores, conforma a música tocava. Não havia cá vinhos tintos ou brancos, nem sequer bagaços, só “buìda fina”. Tanto que ele tinha para contar quando regressasse ao Alandroal! Até iam morrer de inveja.
E as “maganas”? Aquilo é que eram mulheres! Bem vestidas, bem compostas e que bem que cheiravam!
Bem dizia a hora em que o companheiro da “casinha” do lado o tinha desafiado. Até quando lhe vieram oferecer um charuto não se fez rogado.
E quando duas perguntaram se, podiam sentar-se na mesa, todo o Tira-Picos se desfez em sorrisos para que as mesmas os acompanhassem.
Vieram mais bebidas...e tudo estava a correr pelo melhor quando o amigo Galego se sai com esta: Compadre...tenha cuidado olha que “isso” é um homem!
Podia lá ser... uma coisa tão bonita com umas “mamas” daquelas... o homem é parvo!
Mas pelo sim pelo não... O melhor era tirar dúvidas. Foi subindo a mão pelas pernas do “travesti” e quando confirmou que o colega tinha razão... deu tal apertão nas “partes” do outro que além do estrondoso berro, pregou-lhe um “murranaço” no olho, que o Tira-Picos até viu as estrelas.
Estava arrumada a confusão... Tira-Picos e Galego no olho da rua, mas não sem que antes tivessem de largar quinze notas de mil, o que os deixou completamente “tesos” .
O pior é que no dia seguinte a “corja” desaguou na Feira de artesanato, e quando viram os dois “marmanjos”, não só lhe aplicaram nova dose como destruíram o material que ainda possuíam.
Não houve outro remédio senão devolver o Tira-Picos à procedência, onde chegou com um olho à Belenenses, teso que nem um carapau, e sem vontade de regressar a Lisboa.
Mas tinha uma agradável surpresa... ERA PAI.
 TIRA-PICOS É PAI
Sem um “chavo”, e com uma carga de “porrada no lombo”, Tira-Picos lá regressou da sua aventura por terras de Capital.
Que desculpa iria arranjar para justificar, não só o fracasso do empreendimento, como ainda o estado lastimoso em que regressou?
Mas tudo passou, e mais uma vez a “providencia divina “ esteve com o nosso amigo e qual não foi o seu espanto quando se apresentou no Monte das Bujardas, e foi acolhido pelos sogros com efusivos abraços e amabilidades nunca vistas. Na verdade o nascimento do primogénito do casal Tira-Picos fez milagres no coração do pai da Pardaleira, que quando se viu na qualidade de avô de um robusto rapagão dado à luz pela sua filha, transformou por completo o conceito que até então fazia do seu genro.
Não hesitou: a partir de agora, ficas cá no Monte, tomas conta do gado, podes fazer a tua seara e teres a tua horta... e podes ir ao mercado de Vila Viçosa e fazeres os teus negócios. Tens é que teres juízo e deixares as más companhias. O meu neto vai ser criado aqui no Monte, e há-de vir a ser alguém. Há-de ter estudos, pois não quero que seja como os pais, que nunca passaram da cepa torta!
Como o nascimento de um neto pode mudar os sentimentos de uma pessoa!
Foram talvez os melhores anos de vida do nosso amigo Tira-Picos. Nem foi preciso, maçar-se muito com a horta que entretanto construiu, onde volta e meia se entretinha a plantar uma couves, uma alfaces...mas do que gostava mesmo era de cultivar rabanetes e rábanos, pois aquilo ao fim de oito dias já tinha nascido tudo. E como gostava de presentear o seu sogro com um bom rábano (pois no dizer deste, sabia melhor, e fazia menos mal uma “rodela” de rábano do que uma de paio. O que faz a fartura).
E ele lá ia, volta e meia caminho do mercado, quando o dinheiro escasseava, mais para vender uns molhinhos de agriões que apanhava na ribeira e negociar à socapa uma ovelha, ou umas galinhas que ia surripiando no Monte às escondidas do sogro.
E o Sinfróneo (o filho do Tira-Picos e da Maria Amélia) lá ia crescendo, e tornando-se cada dia que passava num robusto rapaz, para orgulho dos seus pais mas acima de tudo do seu avô.
Foi um ano bem passado... de barriga cheia, boas “sornas”, dinheirinho quanto baste e boa vida até dizer “chegue”.
Temos que baptizar o rapaz...para o mês que vem... já falei com o Padre.
Sentenciou o “patrão” ao jantar.
È aqui no Monte, podes convidar os teus amigos...mas vê lá com quem pregas cá!
Foi o princípio do fim de um ano bem passado... o melhor na vida do Tira-Picos.
O BAPTIZADO
Eu quero que isto seja uma grande festa. Mata-se um porco, umas galinhas, podemos até assar um vitelo.... Já encomendei o vinho no Bidais. O baptizado do Sinfróneo há-de ser falado pelas redondezas.
Andava eufórico o babado avô... conseguia até transmitir a toda a família a alegria que trazia dentro de si.
 O Tira-Picos, já tinha ido ao Alandroal convidar os amigos para a cerimónia. Só da sua parte eram mais de cinquenta. As saudades que tinha da sua terra, fizeram com que fizesse uma “via-sacra” pelas “capelinhas” do Alandroal, e por fim a “bêbeda” era já tamanha que pessoa que entrasse na taberna era de imediato convidada para o baptizado. Desde o engraxador, passando pelo Cabo da Guarda, e até mesmo o Presidente da Câmara foram convidados.
E o sogro não lhe ficou atrás, pois além do Presidente da Junta, ainda dirigiu cartas ao Senhor Mário Soares e ao Senhor Cavaco Silva, que para grande decepção tão pouco lhe responderam.
Uma semana antes do grande acontecimento já a Pardaleira e a mãe, com a ajuda da vizinhança deitavam mãos ao trabalho, e foi um vê se te avias a fazer bolos fintos, de alguidar, sss,”filhoses”, azevias, nógados, até uns bolinhos de amêndoas, tipo queijinhos do céu e castanhas, havia. Das bebidas finas encarregou-se o dono da casa, que aproveitou uma ida a Évora para encomendar os licores.
No que dizia respeito a pastelaria, a mesma foi encomendada no Rui do Alandroal, que além do bolo do baptizado, fornecia, os pastéis de nata, os palmieres, os jesuítas e outros de recheio, alem de mais cinco de matéria fina.
Tudo em grande...
Como a azafama era grande em vésperas do baptizado, foi o Tira-Picos encarregado de ir buscar nas vésperas os bolos ao Alandroal, pelo que o sogro lhe passou para a mão uma “notinha de dez mil”, para fazer face ao pagamento do material.
Por azar do Tira-Picos, e ao lado, na taberna do Água Mel, onde resolveu esperar que a “encomenda” estivesse pronta, estava o Açorda que com três copos e uma bolinha de papel, que se mantinha fixa, movimentava os copos sobre a bolinha e convidava os presentes a acertar no copo debaixo do qual estava a mesma. Aquilo fascinou o Tira-Picos. Era impossível não acertar. Ele tinha visto... e não se enganava de certeza, qual o copo que tinha a bola por baixo. Resolveu arriscar... Mil paus! Foi que nem canja...ganhou... Mais outra vez. Desta vez dois mil. Perdeu...E por aí fora...até que a “massa” se transferiu por completo para os bolsos do Açorda,
Só regressou de madrugada, sem coragem de enfrentar os sogros, sem bolos e sem dinheiro.
Mas o baptizado realizou-se e ainda hoje se diz que não houve festa maior, lá para os lados de Pardais... só que bolos finos não houve, e a alegria do avô era tanta que só passado oito dias e quando o Pasteleiro se apresentou a reclamar o prejuízo pelo não levantamento da mercadoria e consequente idmenização, o mesmo indagou e foi poste ao corrente do sucedido.
Acabou-se a boa vida... e Tira-Picos, regressou ao Alandroal... sem mulher e sem filho... que drama!!!
FINALMENTE...NO BOM CAMINHO
Há males que vêem por bem... Depois de “enxotado” de casa dos sogros pela segunda vez, e vendo-se novamente “sem eira nem beira”, a acudirem-lhe à lembrança os tempos que se viu só e abandonado, após a “mijaceira” depois daquela noite de bêbada, e prevendo que novos males se avizinhavam, Tira-Picos resolveu dizer basta, “empinar o juízo”, “deitar contas à vida” e “tornar-se alguém”.
O primeiro passo era ir falar “de homem para homem” com o sogro. Afinal ele era casado, de papéis passados (mentira), o filho era dele, e alem do mais tinha direito a umas cabeças de gado que entretanto tinham nascido. Pelo menos a uma vaca, não contabilizando o que estava por colher na horta que o sogro lhe tinha posto à disposição.
O gaiato nem penses levá-lo daqui, quero que ele seja alguém. A Maria Amélia é lá com ela. Tu, toma lá uma nota de dez, e põe-te a andar...
Não estivesse o pensamento do Tira- Picos, já com as ideias definidas, do que se propunha fazer, e teria sido nessa altura que ajustava contas com o sogro: mandava-o meter a nota no cu, e arreava-lhe tamanha carga de porrada, que nem ele sabia de que freguesia era.
Assim preferiu, arrecadar a nota, deixar a educação do Sinfróneo ao cuidado dos avós, que para isso tinham posses, esquecer por uns tempos a Pardaleira e concretizar o que tinha em mente.
Se as cadeiras com fundos de buinho, tinham desaparecido num ápice, quando da feira de artesanato em Lisboa, porque não havia ele de ir experimentar vender cadeiras aos Lisboetas?
Agora até já sabia o caminho!
Com a nota de dez comprou umas cadeiras... pôs-lhe os fundos... e marchou caminho e Lisboa.
Não precisou de sair do Terreiro do Paço. Logo no barco vendeu metade, e as restantes voaram num instante.
No primeiro mês só lá ia uma vez por semana, mas ao fim de pouco tempo o negócio tornou-se tão próspero que passou a ir dia sim, dia não. Entretanto aprendeu as fazer os cestos de verga. Alternava os cestos com as cadeiras, e mais tarde já era representante de todos os artesãos do concelho, comprando cá, vendendo lá.
Tornou-se conhecido no meio, já não se limitava, a levar...trazia também produtos que não eram vistos no Alandroal, e que transaccionava por bom preço.
Comprou uma carrinha, mais tarde uma camioneta e agora já tem um carro frigorífico, onde faz o transporte de mariscos.
Já não mora no Bairro das Minhocas, mas em casa própria.
Já tem a sua mulher ao seu lado e o Sinfróneo estuda em colégio particular.
Já não pede a bicicleta emprestada, mas desloca-se em jeep do próprio.
A Pardaleira, já não é conhecida assim, mas por D: Mélinha.
O Tira-Picos ainda vai à tasca do Água-Mel, mas não bebe um tinto...bebe whisky.
Deixou de ser o Tira-Picos e passou a ser o Senhor Carrilho Soares.
Pondera agora conjuntamente com o sogro, com o qual tem agora uma S.A.R.L, da qual resultaram algumas P.M.E., se deve ou não aceitar o convite que lhe foi dirigido, pelo P.S.F. (Partido: Portugal Sem Fundos), se, se deve candidatar a Presidente da Junta.

Quanto a mim: moveram-me um processo, que corre os seus trâmites em Tribunal, no qual me acusam de ter denegrido a sua imagem. O que eles não sabem é que assim que eu queira, pura e simplesmente desaparecem. Há...há...há...
E é já....
Saudações Marroquinas
Xico Manel







Monday, April 02, 2012

A CIDADE DO ENDOVÉLICO - (João Cardoso Justa)

Nota introdutória:
Esta publicação, breve síntese de outra, mais abrangente e detalhada que penso editar oportunamente, não tem a pretensão de ser considerada um documento histórico apesar do extremo rigor (documentado) de tudo o nela é referido. Não segue essa metodologia, não é escrita por alguém com formação em História, nem é preferencialmente dirigida ao “mundo académico.

A CIDADE DO ENDOVÉLICO

Se as breves palavras que “rascunhei” há anos, numa tarde solarenga que inundava de morno silêncio a sala de leitura da Torre do Tombo, não tivessem resistido, teimosamente vincadas, numa das minhas caóticas sebentas, a determinação em realizar esta pesquisa histórica de que aqui vos pretendo revelar os resultados, ficaria por certo, como ficam tantas ideias da nossa vida, primeiro, adiadas para tempo incerto, e depois, esquecidas para sempre. Mas, tantos foram os olhares indiferentes, sobranceiros, senão desdenhosos, que em meu redor se multiplicaram quando, entre “a sacra e muy nobre” elite dos meios académicos, me atrevi a balbuciar a informação sintetizada nesse rascunho que, o medo ao ridículo, perante a minha própria inteligência e sobretudo a alheia, a foi remetendo aos poucos para os dúbios níveis do imaginário e do fantasioso. Contudo, em Setembro de 2011, após assistir a uma conferência sobre o Deus Celta Endovélico e da sua localização representativa no Templo (ainda não determinado arqueologicamente) no famoso outeiro de S. Miguel da Mota, o sentido codificado nas letras que traçara de atravesso no meu velho caderno entre o religioso ambiente da Torre do Tombo, reacendeu-se, vivo e incómodo, como nunca.

Efectivamente, (essa a ideia que eu tentava transmitir há muito) não era expectável que em redor de um Templo, com a carga mística contida no culto do Deus a que toda a Ibéria peregrinava, e a grandiosidade física que dos seus inúmeros vestígios podemos inferir, não existisse uma urbe de apoio logístico ao funcionamento de tal complexo e à guarida dos inúmeros devotos que ali se deslocavam (ainda não tinha lido Emil Hubner (1834-1901), que o afirma textualmente). Portanto, apenas duas elementares hipóteses se entrecruzavam em mim enquanto fui olhando os bicos dos sapatos pelo caminho até casa.
1ª - Que está por localizar uma cidade de dimensões consideráveis nas proximidades de S. Miguel da Mota.
2ª – Embora mais remota – Que o Templo do Deus Endovélico não se situava naquele ermo isolado, onde a decrépita ermida, de data incerta e construtor desconhecido, pretende simbolizar a cristianização do ancestral culto pagão.
Ora, era em pleno âmago da 1ª hipótese, que os meus velhos apontamentos, renascidos, incandesciam. E lá estavam, prova viva, entre desenhos e escritos vários, desencarnados de qualquer sonho ou fantasia, esperando que renovado olhar os relesse - «… os historiadores portugueses têm sucessivamente esquecido a existência de uma outra Lacobriga, transtagana (alentejana), céltica, mencionada por Ptolemeu, cap. V, tábua II, da sua Geografia, situada a oriente de Lisboa. Possível localização – Entre a ribeira do Lucifecit e a ribeira de Pardais????... » (ipsis litteris). Eis portanto, nesta última frase das minhas notas recolhidas no mausoléu dos pergaminhos, o motivo que, em vão, me acicatou a “incomodar”o mundo académico para a eventualidade desta descoberta. Aquele pequeno palmo de mundo, entre as ribeiras meridionais da Serra D`Ossa que serpenteiam até ao Guadiana, era o campo, a terra e as árvores e os matos e as ervas, onde nasci e cresci, era o passado da minha região, das “minhas gentes”, que estava em causa. E esse registo de quem fomos, no Alentejo, em Portugal, ou em qualquer outra parte deste planeta, deve ser exposto com absoluta verdade às gerações presentes, para que, desde as passadas, possam traçar a trajetória desta miraculosa raça humana, e, da sua leitura, retirarem o que a idoneidade de cada um achar por bem.
Nessa mesma tarde desafiei-me na realização de uma pesquisa própria, e, é para essa “viagem” regressiva pelo tempo que os convido, até à Antiguidade, até centenas de anos antes do início da era cristã, e aí, entre florestas habitadas por animais selvagens e ribeiros abundantes que se entrelaçavam num majestoso Guadiana (então denominado Anas), determinar a localização, exacta, desta surpreendente cidade que abraçava o Templo do Deus supremo dos Celtas, e que depois, ganhou a veneração de invasores cartagineses e romanos.
Deixei crescer barba e bigode cientista, empinei no nariz os meus óculos mais intelectuais, e assim, vestido com a pele de erudito sobre a essência ignorante (coisa nunca vista), encerrei-me três meses entre pergaminhos, papéis seculares, e microfilmes, na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Qual o significado de Lacóbriga? Que particularidades comungavam esses aglomerados populacionais para que os historiadores assinalassem a existência de cidades homónimas no território hoje designado Portugal? – Estas eram, sem dúvida, as interrogações prioritárias de onde urgia partir.

Etimologia de Lacobriga ou Lacobrica

Escreve o erudito P. Henrique Florez, na sua España Sagrada: «Lacobriga - es nombre antiguo de los españoles primitivos, segun muestra la voz “briga”, frequentíssima en lugares antiguos, que significa vila ó poblacion : y en vista de que la misma voz suele entrar a composicion com términos latinos, como Augustobrica, Caesarobrica, etc. podemos reconocer en Lacobriga la etymologia de Lacus y briga; de suerte que por algun lago vecino recibiese el nombre…»
Mais específico ainda, Leite de Vasconcelos «… o nome “briga” significa “altura”, “castelo”, e provém do termo “brig” que se encontra no irlandês arcaico “bri”- montanha, e noutras línguas célticas. O nominativo irlandês “bri” perdeu a gutural, mas esta encontra-se ainda no genitivo “breg” < “brigos”.»
Podemos pois, desta conjugação etimológica, “Lacus (latina – lago ou lagoa) + “briga”, inferir como significado abrangente de Lacobriga, um núcleo populacional amuralhado, situado numa elevação, com a particularidade de estar próximo, ou, inclusivamente, rodeado por um lago. Simplificando, “Cidade do Castelo do Lago” (ou lagoa) (o P. Florez chama-lhe apenas villa ou Cidade da Lagoa).
Conhecendo de forma genérica o que procurávamos, a razão aconselhava o estudo das duas Lacóbrigas identificadas pelos historiadores. Uma, que seria a norte (na margem esquerda do Douro, diz Plínio (Liv. 3), assinalada no Itinerário de Antonino Pio (Imperador romano, 86 d. C. – 161) no trajecto de Lisboa a Braga (como Lancobriga), de que não nos ocuparemos por motivos que durante esta narrativa serão fáceis de entender (e também porque dela pouco ou nada reza a História, duvidando-se mesmo que possuísse dimensões de cidade), e a outra, essa sim, fundamental e determinante neste estudo, a Lacobriga que os cientistas históricos demarcaram no Algarve e de quem a cidade de Lagos usufrui, (usurpa, como veremos) há séculos, Passado e Fama. Analisemos então como se procedeu à identificação no sotavento algarvio, entre os Cónios (ver fig. 1), dessa mítica urbe que Ptolemeu indica a oriente de Lisboa e à cabeça das cidades Célticas.
Dos Autores Antigos, gregos e romanos, no que se refere à descrição do Sul da área geográfica que o Império Romano designará depois por Lusitânia, diferenciando-a da Bética pelo rio Guadiana (então, por todos referido como o rio Anas), as sub-regiões por eles demarcadas chegam-nos substantivadas pelo termo “Promontorium”. Deste termo latino, das suas diferentes traduções, interpretações, corrupções linguísticas, e respectivas demarcações no terreno, criou-se uma tal miscelânea (desde Avieno, Artimidoro, Estrabão, Plínio, Varrão, Agripa, Ptolemeu, Estácio de Veja, André de Resende, etc. (e este “etc.” inclui centenas que a este assunto se têm dedicado, até aos contemporâneos Jorge de Alarcão e Amílcar Guerra), que, se os “promontorium” fossem placas tectónicas nas mãos destes cientistas, viveríamos há milhares de anos sobre terramotos colossais, tantas são as voltas em que estas regiões colidiram, estrondosamente, nos seus textos. A vocês, meus companheiros de viagem, não os vou arrastar para este interminável “cataclismo” de onde saí com todos os neurónios retorcidos, não é esse o objectivo da nossa investigação, contudo, tenho que referir o “Promontorium Sacro”, traduzido por Promontório Sagrado, pois é neste que os Autores Antigos situaram Lacobriga (“in Sacro, Portus Hanibalis e Lacobriga” – Geografia de Ptolemeu).
É pois, (situemo-nos no sec. XVI) transportando sob o hábito de frade dominicano (que a Inquisição tornará particularmente popular) uma panóplia de “promontorium” e muitas outras informações que recolheu por toda a Europa, que o eborense André de Resende, pioneiro dos nossos arqueólogos, e padrinho de muitas localidades por inspiração própria (Vila Viçosa, por exemplo, para quem ele inventou o nome de Calipolis, e os habitantes desta localidade intitulam-se, há quinhentos anos, de calipolenses, sem que para isso haja qualquer raiz histórica), ávido de riscar no terreno as cidades e os lugares escritos nos seus papéis, qual divino Baptista - «Atravessemos agora o Guadiana e exponhamos aos estudiosos da Antiguidade as cidades da Lusitânia sobre as quais se julgará sem margem de dúvida ou pelo menos por conjectura provável.» - são palavras suas nas Antiguidades da Lusitânia (Adapt. de Raúl Fernandes). E conjecturou tão bem que, alegando uma lenda que os fantasiosos seguidores da “escola alcobacense” enfatizaram dos Autores Antigos, e segundo a qual terá existido um templo a Hércules na ponta de Sagres (Artimidoro foi o único a estar lá em presença e nega peremptoriamente qualquer vestígio desse Templo. Leite de Vasconcelos apenas lá encontrou uma lenda, e bem mais humilde, umas pedras que se moviam, à noite…), e assim, de nada mais que a brisa atlântica, o cabo de S. Vicente absorveu por séculos a designação de Promontório Sagrado, e a cidade céltica de Lacobriga, que André de Resende sabia estar indicada nas Tábuas de Ptolemeu a oriente de Olysipo (Lisboa), ficou a banhos até hoje no Algarve (então país dos Cónios), e as gentes nativas na área da sua verdadeira localização, os netos desses celtas, os descendentes dos lacobricenses que, assim o veremos durante este estudo, foram dos povos mais interventivos na nossa Antiguidade, ficaram privados da sua história com mais de 2.300 anos.

Parece incrível (para quem não acompanha de perto estes malabarismos interpretativos da História) que, em pleno sec. XXI, depois de milhares de supostas pesquisas, de milhares ou milhões de textos supostamente técnicos, mas afinal, apenas compostos por ideias emaranhadas em refinada linguística histórica, possam persistir mistificações do passado com esta dimensão, mas na realidade assim é, e aqui o demonstrarei de forma a não subsistirem quaisquer dúvidas. Em Lagos, ou nas suas proximidades, não existiu qualquer Lacobriga, e acrescento mais, em todo o Algarve não floresceu qualquer urbe pré-romana com as dimensões necessárias para se lhe atribuir a designação de cidade (Ossonoba não pode ser Faro, e que Balsa seja Tavira é muito duvidoso). Parta-se da listagem dos achados arqueológicos publicada por Carlos Fabião no seu estudo sobre o “guarum”(que é bem mais tardio), investigue-se, e medite-se no que essa zona, encerrada entre o mar e as serras, teria para comercializar com fenícios ou cartagineses.
O que resta agora do objetivo inicial da nossa investigação, da procura da Lacóbriga celta, que, julgando-a perdida na memória dos tempos, na esperança que algum moribundo vestígio seu nos surgisse entre a intricada escrita da Antiguidade, nos queimou olhos e cérebro na descodificação de dezenas de livros? A cidade de Lagos, e a convicção que os habitantes dessa localidade algarvia, eles próprios, embora de distinta forma, vítimas também desta falta de rigor científico, portanto involuntariamente, usurpam o passado dos povos que mais lutaram, morreram em chacinas várias, e (é grande a possibilidade atendendo a situações semelhantes com povo celta), se ofereceram e aos seus filhos em sacrifícios de sangue para manterem vivos os Deuses e as áureas sagradas em torno das tumbas dos seus mortos.


Espanha de Ptolomeu

De: A evolução dos Mapas através da História
Autor: Mário Ruiz Morales
Sub-Delegação do Governo de Granada
Universidade de Granada

Como atrás opinei, não há registo de qualquer cidade pré-romana desde a ponta de Sagres ao (então existente) delta do Anas (Guadiana). O mesmo se pode depreender da “Ora Marítima” de Avieno (sec. IV).
Assim, o projecto inicial que nos desafiara, a descoberta da Lacóbriga “perdida”, alterou-se em absoluto. O que iremos demonstrar, sem prejuízo da exacta localização da cidade entre os torrões alentejanos onde permanece sepultada, é que André de Resende (e quem o seguiu), cometeu um tremendo erro ao identificar o Cabo de S. Vicente como sendo o Promontório Sagrado, e, tirando partido da semelhança fonética, “colou” Lacóbriga a Lagos - «O vulgo designa Lacóbriga pelo nome mutilado e algo modificado de Lagos» (Ant. da Lusitânia – R. Fernandes) – afirma ele parecendo querer aliviar as responsabilidades – e atribui a Portimão o nome de Portus Hanibalis (de Portus Hanibalis, supostamente edificada pelo comandante cartaginês Haníbal, pouco mais nos contam os escritos históricos, sabe-se, contudo, que no período árabe se designava por Burj Munt, que significará “Torre no Monte ou Monte da Torre) (quanto a Lagos, diz-nos Mário Saa (1893-1971) em As Grandes Vias da Lusitânia, que no sec. Xll era uma pequena aldeia chamada Halcos), ocultando assim a sua verdadeira localização, que era, sem margem para dúvida (aqui ficará provado), nas terras do Endovélico, em pleno coração dos celtas do Alentejo. Recorde-se, para melhor entender estes “equívocos”, que, à época de André Resende (séc. XVI), Lagos e Portimão eram centros populosos com alguma importância no suporte da controversa Escola Náutica de Sagres fundada pelo Infante D. Henrique, e já com forte implantação da Igreja Católica (Lagos já tinha Bispo, e uma Capela dos Ossos…?).
Concentremo-nos então em desmontar esta teia de inverdades que se emaranha na História desde há séculos. Vários são os documentos históricos de que nos serviremos e que mencionam Lacóbriga, cuja construção (há quem escreva reconstrução, o que pressupõe a existência de um povoado mais antigo) é atribuída ao governador cartaginês Bahodes por volta do ano 370 a. C. (antes de Cristo). Nos Autores Antigos existe mesmo a descrição de um episódio nela passado na guerra de Sertório de que Plutarco dá conta na Biografia deste general romano (Tito Lívio também o menciona) e que muitos outros depois repetem. Mas, antes de analisarmos esses milenários registos e outros posteriores, vejamos aquele (finais do sec. XVI) que nos conta a formação de Lacobriga (em Lagos, não ousando contrariar o “mestre” André de Resende), e, como nesse mesmo escrito, algumas linhas depois, o historiador contorce os factos de tal forma que, descreve também a construção do Templo Endovélico nas Abas da Serra D´Ossa. Um malabarismo curioso, assim o veremos, mas, por pouco inteligente, de uma incoerência total. O seu autor é Frei Bernardo de Brito (1569-1617), um dos mais profícuos filhos da fantasiosa escola Cistercense de Alcobaça, estudante em Roma e Veneza, doutorado em Teologia por Coimbra, e nomeado Cronista-Mor do reino em 1614. Rodeado de apontamentos vários, onde pontificavam os do “sistema” Resende, molhou a pena no tinteiro, e, com um olho no papel e outro em todas as fogueiras da Inquisição que ardiam pelo país, escreveu um texto (Livro ll, Cap. Xll, da “Monarchia Lusytana”) que, “espremido” do seu palavreado medieval e nacionalista (estávamos em plena ocupação espanhola), nos pretende convencer do seguinte: O governador cartaginês Bahodes, depois de sofrer grande contestação na Andaluzia (a Turdetânia, suponho) refugiou-se no Porto de Haníbal (que afirma ser Portimão, claro) onde, ao perceber que as trocas comerciais eram tão cordiais, afectuosas até, com os Lusitanos (para ele o povo dos Cónios não existiu), mandou chamar os chefes das tribos do «sertão» (Alentejo, dos Celtas) e, durante uma grande festança com bois assados junto ao Templo de Hércules (que nunca existiu na ponta de Sagres), pediu-lhes permissão para construir uma cidade no interior, de forma a tornar mais acessível o intercâmbio de bens entre estes e os comerciantes cartagineses. Os chefes tribais do «sertão» (celtas do Alentejo, recordo) acharam uma ideia brilhante e concederam-lhe para tal objectivo, (a criação de um posto comercial mais no interior) uma cidade do povo Cónio(!), ainda mais distante e litoral(!), Lagos (!). Tudo isto é absurdo, é evidente, mas a incoerência na construção de tão desastrado texto por Frei Brito, continua – Depois de construída Lacobriga, Bahodes é substituído pelo governador Maharbal, este, «um dos que mais afeiçoados à nação Portugueza de quantos até aí tinham entrado em Espanha», instalou-se também em Portimão, e aí, há 2.370 anos(!), ouviu falar da cidade de Elvas, muito “famosa” nessa época «que já nesse tempo era cousa notável» (Há um desconhecimento total sobre Elvas nessa fracção do tempo. Ou não existia, ou seria um pequeno povoado da tribo dos Helvécios, presume-se), e, portanto, Maharbal contornou a costa, subiu o Anas (Guadiana) para apreciar essa «cousa notável» que era Elvas, e, sendo acometido por grave e súbita doença, consultados os “adivinhos” («agoureiros»), estes informaram o governador que o Deus Cupido estava muito zangado com ele (entretanto, Frei Brito introduziu no texto a história de uma nau grega que se perdera, cuja carga eram Ídolos de Vénus e Cupido e sacerdotisas venusianas, que os cartagineses capturaram) e, só a construção de um templo dedicado à divindade enfurecida, o poderia curar da desconhecida maleita. «Tal foi o medo em Maharbal, que concedendo liberdade aos gregos, deu logo ordem à formação do Templo, acudindo os Portugueses com tanto gozo à obra, que antes que o Capitão (Maharbal) se partir dali, foi acabada e posta no Templo de Cupido… (descreve o ídolo, e continua) … chamando a este ídolo em nossa língua antiga de Endovélico, cujo nome vemos nos templos de agora em algumas pedras do Templo dos romanos…». Assim, com esta “simplicidade”, se separou a cidade de Lacóbriga, em trezentos e tal quilómetros, do Templo Endovélico que, ficámos a saber pelo erudito Padre de Cister, se Elvas não fosse «uma cousa tão notável» que dava brado há 2370 anos entre os Cónios das praias algarvias do barlavento, os Celtas não teriam adorado o seu Deus, uns milhares de anos antes dos acontecimentos relatados por Frei Brito…
Depois de folhearmos estas páginas de puro ridículo, debrucemo-nos sobre o episódio mais conhecido da História Antiga em que Lacóbriga é referida, e que, na procura de explicações racionais para os acontecimentos nele referidos, mais tem perturbado os historiadores modernos, forçando-os a duvidar da situação geográfica que os clássicos lhe atribuíram. «Problemática» Lacóbriga, chama-lhe Amílcar Serra sem saber onde a colocar para que os registos históricos façam sentido (Alarcão “atira” com ela para a Arrábida, outros até para Coimbra). Esse texto, que podemos ler na “Biografia de Sertório” por Plutarco, e em muitos outros autores, contém informações preciosas para este nosso estudo, permitindo preencher as dúvidas que tanto têm perturbado quem o analisou em complexas conjecturas, e, marginalizando o evidente, “saltou” com a localização da cidade de Lacóbriga e do quartel-general de Sertório pelo mapa da Península Ibérica, (Pompónio Mela, Schulten, Muller, Tovar, Roldán, Alarcão, Amílcar Guerra, etc. etc.) tentando alcançar uma explicação racional para a sucessão dos eventos descritos no referido documento.
O enquadramento histórico das ocorrências registadas nesse texto, compreende o período em que Sertório, depois do seu retiro no norte de África causado pela guerra entre Mário e Sila, volta à Península Ibérica (há quem diga que a pedido das tribos que nela continuavam a resistir aos invasores romanos) e comanda os guerreiros nativos a quem juntou outros trazidos das regiões africanas. Entre as legiões de Roma que venceu, as comandadas pelo procônsul Quinto Cecílio Metelo Pio, foram das que mais sofreram com as investidas constantes de Sertório que, adoptando a táctica de guerrilha nativa, a mesma que anos atrás tanto sucesso permitira a Viriato (O segundo Viriato de que fala a história, natural do chamado Hermínio Menor, Marvão (!). O primeiro Viriato, contemporâneo de Aníbal Barca, faleceu na batalha de Cañas (216 a. C.). Viriato, não era um nome próprio, era um título, “o que usava as vírias”, símbolos de poder). Conta-nos Plutarco que Cecílio Metelo, vendo as suas legiões cada vez mais desgastadas por uma guerra para que não estavam preparadas, e querendo mudar a feição da contenda, resolveu cercar a cidade mais fiel a Sertório, Lacóbriga. A intenção do cerco era vergar os lacobricenses pela sede, uma vez que, apesar da abundância de água que rodeava a fortaleza, esta, intra-muros, possuía apenas um poço (outros escrevem cisterna). Imaginando uma rápida rendição, Cecílio Metelo ordenou aos seus homens que se aprovisionassem para meia-dúzia de dias, mas Sertório, rapidamente avisado pelos seus vigias, ordenou que se enchessem dois mil odres de água, e, pela calada da noite e pelos trilhos da serra, conseguiu introduzir o precioso líquido na fortaleza aliada. Cecílio Metelo, ao perceber que os sitiados resistiriam muitos mais dias que os previstos, enviou o seu lugar-tenente, Aquílio, com seis mil soldados, para recolherem novos mantimentos. Antecipando esta decisão do comandante rival, Sertório montara-lhes uma emboscada onde dizimou completamente as tropas de Aquílio que, sem armas e sem cavalo, se apresentou perante Cecílio Metelo, e todos, apavorados com a aproximação dos guerreiros de Sertório, atravessaram o Anas (Guadiana) e refugiaram-se nas cidades que dominavam para além deste rio.
O que contém este breve, mas sangrento, episódio da guerra contra Roma, que relatámos por súmula dos diversos textos históricos que a ele se referem, que tanta discussão tem causado entre os meios académicos? Que interrogações impedem os investigadores de refazerem pela razão os acontecimentos nele descritos? A mais evidente, por roçar o incompreensível, é a relação de privilégio (mencionada em todos os documentos) entre Sertório e a cidade de Lagos (suposta Lacóbriga). Como poderia existir tal afinidade, entre uma povoação situada nos confins do barlavento algarvio e o ex-cônsul romano que desenvolvera toda a sua campanha militar no centro da Península Ibérica e, que se saiba, nunca estabeleceu qualquer contacto com povos tão meridionais? Não faz sentido, contudo, fez acumular entre estudiosos modernos as dúvidas sobre a localização de Lacóbriga em Lagos (e por consequência, do Promontório Sagrado corresponder ao cabo de S. Vicente). E onde estaria aquartelado Sertório para que, de imediato, ter a informação do cerco e da premência de água? Bem perto, certamente, porque conseguiu resolver o problema com os famosos odres de água introduzidos na cidade através dos matagais da serra. E que serra? E a que distância estaria do Anas (Guadiana) a cidade dos lacobricenses, para que Cecílio Metelo o conseguisse cruzar com as suas tropas de forma tão rápida, evitando a perseguição dos guerreiros de Sertório? É inimaginável a quantidade (e a qualidade) das teorias avançadas na tentativa de dar respostas a este “imbróglio”. Direi mesmo que os historiadores entraram num “devaneio” total (desde o quartel-general de Sertório ser em Conitorgis, mais uma das cidades por localizar, desde marchas forçadas dos guerreiros sertorianos de 100 km por dia, teorias e mais teorias, e Lacóbriga saltitando pelo mapa como peça de dominó sem lugar onde encaixar). Contudo, para mim, nascido e criado entre os campos que, através dos meus velhos rascunhos, continuavam a reclamar para si a pertença dessa mítica cidade, outros pormenores da descrição do malogrado cerco de Cecílio Metelo, começavam a desenhar uma imagem que há anos conhecia. Afastei-a por improvável, mas ela teimava em emergir da memória e introduzir-se nos meus raciocínios, ganhando gradual sentido em cada aparição. Até que, incontornável, claramente impressa no texto que então examinava (Mappa de Portugal, Antigo e Moderno, do padre João Bautista de Castro, Pub. 1775) sobre Lacóbriga, essa visualização de que falo, me olhou nos olhos, feita palavra, surpreendente, entre os papéis velhos que enchiam a minha secretária na Biblioteca Nacional. No documento aberto entre as minhas mãos, o padre Castro começava por referir uma história muito famosa na tradição oral, recolhida por Baptista Mantuano nos seus Agelários, (André de Resende diz que a ouvia desde a sua meninice, em Évora) - «Em tempo dos romanos foy cidade muy famosa (Lacóbriga) e lembra-se della Baptista Mantuano, quando diz, que erigira o Senado desta povoação, sete estátuas a Ardiboro (Resende, diz Ardíburo), capitão insigne do imperador Valentiniano, as quais prostraram os Vandalos quando a tomaram.» E, algumas linhas depois, - «Há quem diga que Lacobriga é a villa de Abrantes, outros do Landroal, e João de Mariana diz, que é a villa de Alvor, fundada por Aníbal.»
“Landroal”(!), significava isto que, séculos atrás, alguém concluíra o que eu, depois de ler o texto sobre o cerco de Lacóbriga pelas tropas de Metelo, recusava aceitar, a vila do Alandroal satisfazia por inteiro todas as condicionantes (no domínio geográfico e no lógico) implícitas no polémico documento de Petrarca e muitos outros, e a imagem, que de uma forma recorrente dançava na minha memória (e vos mostrarei aqui, quando explicar o que afirmo) completava-lhe o sentido. Ávido por companhia nas minhas conjecturas, parti em busca do historiador que colocara na História semelhante hipótese. Quem era esse homem que ousara desafiar Resende? Em que argumentos se fundamentara para desafiar os dominicanos? Muitos livros depois, “entrei” no Nº XXX das Notícias da Conferência da Academia Real de História em 1724. Em “livros de folha”, 174, (Miscelânea de papéis políticos e curiosos) diz o seguinte: - «Em nome do grande João de Barros, está neste livro uma descrição da antiga Lusitânia, que não é seu, mas de Gaspar Barreiros, como se vê por alguns lugares em que faz menção à sua Corografia impressa; este Tratado é “douto”, e não está acabado, a última terra que menciona é Tentugal, que quer que seja a antiga Concórdia, e nos nomes antigos discorda muitas vezes de André de Resende, e algumas com boas conjecturas…» (e mais abaixo, no mesmo texto) «sobre a etimologia de Lisboa e a sua formação, aponta muitos erros que a vaidade dos Autores modernos quis autorizar, e é digno de se ler este discurso, como todo o Tratado; descreve algumas terras mediterrânicas, e para que Beja, e não Badajoz, seja Pax Julia, diz que acrescenta aqui os argumentos que defendeu na sua Corografia, e também confirma que Julia Mirtilis, a que chama Mirtilis Julia, é Mértola, e tratando logo de outra Lacóbriga dos Turdulos, mostra equívoco dos dois nomes e infere que uma delas é o Landroal.» Gaspar Barreiros, era este o nome do historiador que não alinhara nas confusões (manipulações) de André de Resende (por ser franciscano, portanto com outras “raízes” na Igreja Católica?). Gaspar Barreiros nasceu em Viseu por volta do ano 1500, formado na Universidade de Salamanca, foi um dos maiores eruditos e geógrafos do sec. XVl. Era sobrinho do célebre João de Barros e incumbido mais tarde por decreto régio de finalizar as Décadas de seu tio, tarefa que não realizará. Foi cónego de Viseu e Évora, chegou a pertencer à Inquisição sob as ordens do Cardeal D. Henrique, deslocou-se como embaixador a Roma onde abraçou as regras jesuítas, mas, meses mais tarde, possivelmente desgostoso com essa vivência, rogou ao Papa que o deixasse enveredar pela humildade dos franciscanos. Do extenso trabalho que deixou manuscrito nas mãos do seu irmão Lopo de Barros, apenas se imprimiu a “Chorographia de alguns lugares…”, e “Críticas de Quatro Livros… “. Da restante obra, supostamente perdida, ou escondida em obscuras bibliotecas, Justino Mendes de Almeida conseguiu localizar o que designou por “Um inédito de Gaspar Barreiros: «Suma, e Descripçam de Lusitania» (Coimbra/1984), e na qual o Geógrafo se refere a Lacóbriga. Para meu desapontamento, é um texto vago, não nega com frontalidade a existência da Lacóbriga algarvia (diz que só Pompónio Mela a menciona) e depois de pretender que os restantes historiadores confundiram Lacóbriga com Lancóbriga, afirma: - «… assim que todos se enganaram, e quanto ao lugar de hoje onde seria Lancobriga nisto há muita dúvida, e muita notícia obscura, quanto a mim parece-me que deve ser o Landroal.» Dos apontamentos, ou das conclusões já sintetizadas, onde fundamentava esta opinião, nada achei. A que informações teve acesso o cónego Barreiros nos anos que passou em Évora, ou o que viu “in loco”, no Alandroal, para que a Conferência da Academia de História em 1724, considerasse tão “douta” esta arrojada hipótese? Silêncio total, é a resposta da História a que temos acesso. Até que em 1888 (finais do sec. XlX, em que as chancelas da Inquisição já se haviam quebrado sob os pés dos iluministas), outro investigador passeia a batina pelos campos alentejanos, contrai repetidamente o sobrolho sobre os escritos dos Autores Antigos, e, (profundo apaixonado pela História e pela Arqueologia) atreve-se a desenterrar, desde as faldas da Serra D´Ossa, a problemática questão da Lacóbriga dos Celtas. Chamava-se, esse curioso e erudito padre (músico também), Joaquim José da Rocha Espanca (1839 – 1896), e o estudo onde compilou as suas investigações e conjecturas, foi publicado na “Revista Archeológica”/ Lisboa, onde assina sob a data de 07/08/1888. Apesar de algumas evidências absolutas que aponta, e onde reclama a localização dessa antiquíssima cidade no Alto-Alentejo (mais propriamente entre os “Vilares de Bencatel e Pardais, defenderá depois, num complemento mais detalhado desta publicação), o único interesse que recebeu em troca do seu texto, concentrou-se por inteiro na preocupação dos museus pela recolha dos muitos achados arqueológicos que o esforçado padre recolheu entre vinhas, terras de “semeadura”, e infindáveis olivais. Da sua argumentação histórica, do alerta que pretendeu enviar aos outros investigadores para a existência, sob os campos alentejanos das últimas ondulações da Serra D’Ossa, da cidade que Ptolemeu colocou à cabeça das cidades Celtas, o incompreendido clérigo, sem eco nem audiência, ficou até hoje a pregar ao vento em pleno «sertão». E porquê? Que razão impede um olhar mais atento dos historiadores para as opiniões de Gaspar Barreiros (que não nega a existência da Lacóbriga em Lagos) ou de Rocha Espanca (que também o não faz, falando sim de uma 3ª Lacobriga), quando afinal está claramente escrito nos Autores Antigos que essa cidade é Celta (e se sabe que o coração da região celta era o Alentejo) e se situa a oriente de Lisboa? Porque, (e foi isso que os impediu de negar a localização inicial de André de Resende), existe um outro pressuposto, a cidade deve localizar-se no “Promontório Sagrado” (Promontorium Sacro) «in Sacro Lacóbriga e Portus Hannibalis» assinalam os mesmos textos. Ora, convenhamos, encontrar um promontório no centro do «sertão» alentejano, não se afigura tarefa fácil.

O Promontório Sagrado

“Promontorium”, termo latino, cuja tradução nos remete de imediato para a óbvia tradução da palavra promontório (ou cabo). No entanto, assim como em muitas questões de outro âmbito, o óbvio é uma ferramenta do erro, remetendo o entendimento para verdades de sinal contrário. “Promontorium”, significa também – acima de, elevação, serra, montanha (quando a significação pretendida era serra ou montanha, incluía também a zona envolvente. Leite de Vasconcelos refere-o antes de embarcar em mais uma “calamidade” entre promontórios marítimos) e, com esta intenção de sentido era vulgarmente utilizado na Antiguidade). Resulta daqui que, com toda a propriedade, a expressão “Promomtorium Sacro” pode (e deve, neste caso específico) ser traduzida por Serra Sagrada ou Montanha Sagrada. E onde, com mais segurança de verdade histórica, se poderá encontrar serra ou montanha que corresponda a esta designação? Em Sagres, onde afinal nunca existiu qualquer templo? Na Arrábida, onde alegadamente existia um templo a Neptuno (numa época pré-romana?)? Como é possível que, aos nossos historiadores, não tenha ocorrido que a serra onde os Celtas tinham os altares dos seus deuses supremos (Endovélico, Atégina (Proserpina), Runesus, Fontana, Fontano, talvez Fagus (herdade da Faia)), essa Serra Sagrada, fosse, naturalmente, a Serra D’Ossa? Que outra Serra, que outra Montanha Sagrada poderia existir, senão aquela que congregava os Deuses no coração da nação céltica (Alentejo), e, (“coincidência”!) geograficamente situada, sem qualquer margem de erro, a oriente de Lisboa? Nos limites desse “Promontorium Sacro”, se situou Portus Hannibalis porque o comércio com os cartagineses (cereais, lã, e sobretudo os produtos da abundante extracção mineira) fazia-se pelo Anas (Guadiana), todos os historiadores o reconhecem. Embora a História nada diga de relevante sobre Portus Hannibalis, através do nome árabe, Burj Munt – Torre no Monte, ou Monte da Torre, Juromenha é uma boa candidata à sua localização, mas não tenho qualquer garantia que o confirme. Mas tenho sim , e muitas, evidências (ao longo deste estudo se irão revelar) que nesse “Promontorium Sacro”, o mesmo (e único) que Ptolomeu mencionou, está, a Lacóbriga que Bahodes ergueu, e junto à qual, Maharbal engrandeceu o templo de Endovélico, o grande Deus do Celtas, depois denominados Celtici, que viviam entre o Tejo e o Guadiana. E é essa Lacóbriga, a única que preenche todas as condicionantes implícitas no polémico texto que descreve o cerco montado por Cecílio Metelo, sem recorrer a qualquer esforço imaginativo nem discursos fantasiosos. E é, dessa enigmática cidade, da Cidade do Castelo do Lago, ou Cidade da Lagoa, situada a oriente de Lisboa, nas abas da Serra D’Ossa, perto do rio Anas (Guadiana), e que apenas possui uma cisterna no seu interior, que aqui vos mostro uma imagem, mil anos depois da sua construção, após D. Dinis já ter erigido sobre as suas fundações o actual castelo que, como veremos, possui ainda mais “segredos” para revelar.


- Na zona aqui demarcada em azul, Duarte D´armas, para que não restassem dúvidas, escreveu “Alagoa”.
- No quadrado a vermelho, chamo a atenção para umas intrigantes ameias que, sendo vistas de Sul, eliminam a tentação de as considerar um resquício de Vilares, que o «vulgo» aponta como sendo o originário Alandroal.
Vejamos agora, com a localização de Lacóbriga determinada (e uma parte, repito, uma parte, da cidade já documentada na Fig. 3), o famoso episódio do seu cerco que tanta tinta delirante consumiu sob as “doutas” penas dos historiadores.

O CERCO DE LACÓBRIGA

Para a compreensão definitiva deste acontecimento ocorrido há mais de 2000 anos, é fundamental determinar a localização dos aquartelamentos das legiões de Cecílio Metelo e do acampamento dos guerrilheiros de Sertório. Quanto ao quartel-general do procônsul romano, Manuel Andrade Maia dá-nos uma ajuda preciosa (Romanização do território português ao Sul do Tejo / Faculdade de Letras de Lisboa / 1987) (pág. 165): «Domergue (Claude Domergue) contribuiu, de forma notável, para confirmar o apoio das populações da futura Bética à causa de Metelo, ao dar a conhecer glandes de chumbo, por utilizar, em Azuaga (província de Badajoz). Estas balas, apresentam a marca “Q. ME” ou “Q. MET” que o autor identifica, logicamente, com o procônsul da Ulterior, Q. Cecilius Metellus Pius. A inscrição demonstra que as glandes foram manufacturadas naquela localidade da Sierra Morena, quando o procônsul tinha estabelecido, na região, o seu quartel-general e base, contra Sertório.» Quanto ao acampamento dos guerreiros do sublevado Sertório, parece-me indesmentível, depois de lermos Plutarco e tantos outros autores (André de Resende tudo fez para o ligar a Évora, até lhe “deu” casa, mulher, e serva), seria nas franjas da Serra D´Ossa viradas para a cidade eborense, há quem refira Vale de Infantes, outros a povoação de Pomares, até mesmo Evoramonte, S. Gens, etc. Não me querendo intrometer sobre a discussão subjacente, a localização do mítico Monte Vénus corresponder a um destes locais, deixo aqui apenas estas palavras de Tito Lívio quando trata da acomodação das tropas sertorianas entre as populações locais: «… os venusianos (naturalmente os habitantes do monte Vénus!) depois de repartir estes homens entre as famílias, para que aí fossem recebidos e bem tratados…»
Assim, sem obrigar os homens de Sertório a correr mais que cavalos, de odres às costas, desenfreados para o Algarve, ou para a Serra da Arrábida, nem as legiões de Cecílio Metelo a deslocarem-se, quais fantasmas invisíveis, para cercarem essas zonas, tudo se passou, afinal, numa área de aproximadamente 50 km o que, justifica desde logo, o pouco aprovisionamento das tropas romanas. O procônsul atravessou o Anas (Guadiana) vindo das cercanias de Badajoz, por Juromenha (que nesta época se chamaria Dippo, ou Dipone,) e montou o cerco a Lacóbriga remetendo os habitantes para o interior das muralhas onde ficaram dependentes da água existente na única cisterna. Os guerrilheiros de Sertório, acampados na Serra D’Ossa, tiveram de imediato conhecimento do cerco (ainda hoje há atalaias por toda aquela zona), e, sem marchas forçadas, profundos conhecedores do terreno, durante a noite desceram pelos trilhos da serra e introduziram os afamados odres dentro da cidade sitiada. Os restantes guerreiros, com Sertório á cabeça, rodearam a zona invadida e armaram a cilada onde chacinaram todos os soldados que acompanhavam Aquílio quando se ia reabastecer. Avisado do desaire e da aproximação de Sertório, Cecílio Metelo levantou o cerco, atravessou o Guadiana e refugiou-se nas cidades que dominava para lá deste rio. Como sempre, afinal, quando a verdade impera, a explicação é simples.
Os pressupostos anteriores, na localização dos respectivos quartéis-generais, de Sertório e do procônsul Metelo, são afinal, os mesmos que serviram para entender o chamado “problema da batalha de Segóvia”, cuja localização “saltou” centenas e centenas de quilómetros por toda a Península Ibérica e pelo imaginário dos historiadores, até que em 1981, Teresa Gamito, apontou o dedo para Segóvia, no concelho de Elvas (!).

A CONSTRUÇÃO (ou reconstrução) DE LACÓBRIGA

Depois de localizada Lacóbriga, recuemos quatrocentos anos desde este episódio com Sertório, e vejamos também, sem cidades celtas no Algarve, sem barcos gregos carregados de Ídolos e sacerdotisas, e sem arrufos do deus Cupido, o que resulta da versão do “criativo” Frei Bernardo de Brito quando descreve, no mesmo texto, a construção da cidade Lacobricense e do Templo a Endovélico.
O governador Bahodes, era responsável pelas feitorias cartaginesas que ao longo do Guadiana (lembremo-nos que nessa época as “estradas”, as vias de transporte, eram os rios e os seus afluentes, muito mais caudalosos que no presente) recolhiam os bens produzidos em abundância no interior da Península (ouro, prata, estanho, cereais, carne, lã, entre outros), trocando-os por armas, tecidos, estatuetas, peças de vidro, cerâmica, e demais produtos produzidos em zonas mediterrânicas. Assim, Bahodes, inteligentemente, percebeu o valor estratégico de possuir um entreposto no local onde afluíam tantos peregrinos (razão pela qual muitos historiadores afirmam que instituiu uma grande feira anual em Lacóbriga) e propôs aos nativos a construção de uma nova cidade (ou reconstrução da antiga, alegadamente destruída por um terramoto), apoderando-se assim de todo o comércio na zona que albergava os devotos. Por esta razão, Frei Brito escreve - «Os nossos, a quem não eram suspeitos estes negócios, pelas frescas pazes, lhe concederam logo a sua petição…». Erguida (ou reerguida) a cidade, Bahodes é rendido pelo governador Maharbal que, ao visitar a recente construção e prestar homenagem ao Deus Endovélico (assim homenageando a cultura nativa), achou por bom investimento a construção de um Templo, certamente com a grandiosidade da, depois designada, por cultura greco-romana, junto ao tempo primordial celta (que seria uma grande formação natural junto à água, característica comum aos templos célticos). Portanto, Bahodes edificou uma nova Lacóbriga, e Maharbal edificou-lhe um novo Templo. Simples.

LACÓBRIGA (Landroal), NO MAPA VIÁRIO ROMANO

A localização geográfica de uma cidade com esta carga histórica, «Em tempo dos romanos foi cidade muy famosa…», acrescenta, ao que já dela conhecemos, o P. Bautista de Castro e outros historiadores o fazem (mais conheceremos ainda da sua surpreendente existência), levanta de imediato outra pergunta. Como justificar então, que tal cidade, não esteja mencionada nos Itinerários das vias romanas? Muitos investigadores, embora desconhecendo a localização de Lacóbriga, colocaram esta questão de outra forma pertinente. Como era possível que, entre as vias romanas que ligavam Évora a Mérida, não existisse uma ligação nesses Itinerários direccionada ao Templo do Endovélico? No Itinerário de Antonino Pio (imperador romano, 138-161) principal referência das estradas romanas, e que tantos neurónios gastou e gasta aos estudiosos destas questões, a via que faz a ligação (vinda de Lisboa) entre as referidas cidades de Évora e Mérida, é conhecida pela designação de Itinerário XII, que, na zona alvo deste nosso estudo, faz o seguinte alinhamento: Ebora (Évora) – Ad Atrum Flumen – Dipone (que seria Juromenha) – Evandriana (apontada como sendo Olivença) – Emerita (Mérida). Assim, existem as mais variadas sugestões apontadas pelos campos, numa mistura desigual entre instinto e razão. Uma “canseira…”, escrevendo em alentejano puro. Estudei depois o trabalho de Mário Saa (1893-1971) que, sendo natural de Avis, calcorreou todo o país por veredas e azinhagas tentando descodificar os Itinerários, mas, em boa verdade, concluí que mais foram os problemas criados que as soluções encontradas. Por fim, desnorteado, e também desorientado, confesso, resolvi voltar a estradas menos poeirentas e concentrei-me de novo no Itinerário de Antonino Pio: Ebora – Ad Atrum Flumen – Dipone – Evandriana – Emerita. Na remota esperança de pista fugaz, agarrei-me ao dicionário e traduzi Ad Atrum Flumen = Passagem do rio obscuro. Isto é, fiquei ainda mais baralhado. Mas, uma vez mais, percebi alguns dias passados e muitos livros vazios, era em mim (pelo privilégio de naqueles campos ter nascido), e não nos que ali haviam passado sem conhecer o chão que pisavam, que habitava a resposta. “Passagem do rio obscuro”, e, por efeito contrário, em mim fez-se luz. Eu sabia, muito bem, onde estava esse rio, aliás, onde está, correndo desde há milhares de anos sob os campos de Lacóbriga, oculto, silencioso, aparentemente alheio, mas sendo ele o ponto fulcral na formação da sua história, e, por consequência, o fundamento base que fechará num mesmo sentido todas as revelações deste estudo. “Cabo de Mar”, chamavam-lhe os velhos, pretendendo com esta expressão designar um rio subterrâneo. «Dizem que vem de França, atravessa a Espanha, dá a curva em Sousel, e passa aqui, debaixo da vila». Coincidência, ou talvez não, em 1982, apresentaram-se uns mergulhadores (espeleólogos) ligados a uma universidade francesa (Versailles), que procederam à sua prospecção. Neste momento aguarda-se a divulgação de um novo estudo realizados por espeleólogos portugueses nos algares das Morenas e Stº. António. Se esse “braço de mar” que “vem de França,” contribui para a alimentação da bacia hidrográfica que se espraia sobre o anticlinal de Estremoz, desde o Cano, Sousel, até ao Alandroal, e influencia o curso dessas águas subterrâneas, os geólogos nos darão conta, certamente.


Sobre a zona assinalada a vermelho, encontram-se os “Villares” de Bencatel, Alandroal e Pardais, assim como a área que engloba os algares.

O intrépido caminhante de Avis (Mário Saa), (percebi numa 2ª leitura do seu trabalho, e já lhe pedi desculpa) se à data possuísse esta informação, teria ficado na história como o investigador que localizou Ad Atrum Flamen - «Depois de Évora não há conhecidos sinais romanos até ao caudaloso Lucefécir. Mas a leste do rio intensifica-se a arqueologia romana, em “centrações”, duas das quais, as mais notáveis, são aqui conhecidas por «vilares». Há os vilares de Bencatel (fez mal em não pensar nos vilares do Alandroal, e diz que não conseguiu encontrar a Azenha das Freiras), 1,5 km. ao sul da povoação actual, e 4,5 Km. a leste, os «vilares» de Paredais.» (O nome da aldeia de Pardais, deriva do nome “Paredais”, querendo significar paredes velhas ou muros antigos). E depois, Mário Saa escreve - «Mas de Évora aos “vilares” de Bencatel nada tem que possa interessar o arqueólogo», o que significa que, com a tradução de Ad Atrum Flamen (passagem do rio obscuro), que é a povoação indicada pelo Itinerário depois de Ebura (Évora), mais a informação do curso de água subterrâneo, o historiador de Avis tiraria a lógica conclusão (Creio, do trabalho que li de Rocha Espanca, que ele não teve conhecimento, ou não deu importância, ao “braço de mar”, e no entanto, ainda há homens vivos que lá nadaram, entrando por uma gruta situada na zona conhecida por “Tapada das Caraças”que encosta à “Tapada das Moedas”. Mais tarde, aqui voltaremos).
Nova questão, certamente, se instala agora entre os leitores mais atentos – Que motivo levou o responsável pelo Itinerário de Antonino Pio a substituir o nome de uma cidade tão famosa, Lacóbriga, pelo de Ad Atrum Flamen? Duas, são as possibilidades, onde devemos procurar tão complicada resposta.
1ª – Que a cidade perdeu importância até à data da elaboração dos Itinerários (princípios do Séc. II) e passou a ter outra denominação.
2ª – Que os construtores do Itinerário, apesar da importância da cidade, para melhor cumprirem o objectivo do seu trabalho, acharam que o nome Ad Atrum Flamen era mais abrangente, portanto, passível de fornecer mais informações aos caminhantes.
A primeira possibilidade é, na minha opinião, de excluir. No ano de 663, sob o domínio visigótico, (a estrutura eclesiástica manteve-se apesar da queda do Império Romano do Ocidente), vemos a assinatura de Servus-Dei, Bispo Lacobricense, no 4º Concílio de Toledo, o que pressupõe a continuação do seu esplendor, e conhecemos, em traços gerais, a sua importância durante o período árabe com a designação de Al Azwiya, nome que Lagos também reclama (o erudito António Rey, caiu involuntariamente nesta mistificação, sem atender à etimologia da Azwiya (Azóia) que identificou no barlavento algarvio – Al Rhayiana), e que, aplicado a uma povoação como Lacóbriga, se poderá traduzir como Cidade-Hospedaria (função também desempenhada pelos mosteiros). Seria a cidade algarvia uma hospedaria para os peregrinos (a 35 km.!) que se dirigiam ao templo inexistente em Sagres? Mas, tirando proveito da “simpática” recolha documental dos mistificadores que pretenderam construir um passado fictício para a cidade de Lagos, podemos aproveitar um pouco da “sua” história - «Abderraman, califa de Córdova, reedificou as muralhas dotando-as com duas ordens de grossos muros e torres.» Conforme se pode verificar na seguinte figura…

Resta-nos pois, a 2ª possibilidade - vejamos o que está subentendido no seu enunciado e a surpreendente conclusão a que nos conduz. Que significação tão relevante poderia conter Ad Atrum Flamen (passagem do rio obscuro) para se sobrepor ao nome de uma cidade como Lacóbriga? Uma única explicação pode satisfazer as premissas contidas nesta interrogação. “A Passagem do Rio Obscuro” teria, sem dúvida, que englobar no seu significado a abrangência de um destino mais famoso e procurado que a própria cidade. Portanto, apenas a fama do próprio Templo do Endovélico podia preencher esta condição. Retiremos, para exemplo demonstrativo, uma situação da atualidade. Se num mapa de Portugal, estiver mencionada a expressão “Cova da Iria”, saberemos de imediato que essa via se dirige ao centro do culto mariano, e teremos simultaneamente o conhecimento, por associação, que indica a cidade de Fátima. Assim, e da mesma forma, a “Passagem do Rio Obscuro” assinalava a estrada que conduzia ao centro do culto a Endovélico, e, por associação, à cidade envolvente, Lacóbriga.
Ora, que saibamos, sob o outeiro de S. Miguel da Mota não corre qualquer rio subterrâneo, e Lacóbriga dista deste local cerca de 4km., o que inviabiliza toda a minha argumentação anterior, ou então, por dedução contrária, inviabiliza a existência do Templo a Endovélico na localização que lhe atribuem.
Efetivamente, e tendo consciência do “sacrilégio” que representará para muitas pessoas apaixonadas por este tema, esta minha conjetura, devo afirmar, por disso estar convicto, que, quer a localização do Templo do Deus Endovélico no ermo ressequido de S. Miguel da Mota, quer no exíguo altar da Rocha da Mina (hipótese Manuel Calado), não fazem qualquer sentido

O “problema” Endovélico

Vejamos, em concreto, a situação presente que os arqueólogos, depois de centenas de anos de pesquisas e bibliografias, enfrentam na localização do Templo a Endovélico, Deus Supremo dos celtas do «sertão». Pelas palavras dos próprios, após a última investigação séria feita em 2002 (Amílcar Guerra, Thomas Schattner, Carlos Fabião e Rui Almeida):
«Chegados a este ponto, é interessante reflectir sobre os erros de avaliação que sempre foram cometidos quando se tratou do sítio de S. Miguel da Mota, incluindo os signatários. Em primeiro lugar, sempre se admitiu que deveríamos estar perante uma estrutura fruste, por ser um santuário consagrado a uma divindade indígena, quando toda a evidência escultórica e epigráfica nos falava de um santuário romano e sugeria mesmo alguma monumentalidade. Em segundo lugar, sempre se tomou como certa a localização da estrutura (um templo ou vários) no topo da crista, no local onde se ergueu mais tarde a ermida de S. Miguel, pelo que os vestígios de utilizações antigas da encosta nascente foram considerados como pertencentes a um amuralhado indígena, pesando na apreciação, uma vez mais, o carácter da divindade (Vasconcellos, 1905, p. 125), ou estruturas anexas ao santuário, quando afinal, ao que tudo indica, se trata do santuário propriamente dito».
Afinal, sabe-se agora, que não se tratava do «santuário propriamente dito», e esta teoria, do “templo de socalcos”, está definitivamente arredada entre os investigadores. E outras assim acabarão, em “nada”, porque nada se saberá da localização do Templo enquanto os arqueólogos recusarem aceitar que, há anos, perseguem uma pista “plantada” (não sei qual o “ramo” eclesiástico que o fez ao decidirem cortar pela raiz todos os cultos pagãos), que, como em todas as situações semelhantes, pretende afastar o conhecimento comum das pedras que falam verdades incómodas. A capela de S. Miguel foi erigida (repito, não se sabe quando nem a mando de quem) naquele local, porque ali existiam vestígios romanos (talvez uma habitação) que foram preenchidos, como se infere do texto publicado em 2002 pelos referidos autores «Era evidente que todo este material se encontrava descontextualizado e reutilizado simplesmente como material de enchimento, à semelhança do sucedido com muitos dos outros exemplares (escultóricos e epigráficos) daqui levados por Leite de Vasconcellos em 1890, as estátuas e outros fragmentos preenchendo a cavidade natural e a árula usada como material de construção». Que verdades procuraram ocultar da posteridade essas fantasmagóricas personagens? Não sei. Quem se dedica a estudar essas “guerras”, depois de afirmar que o poeta Luís de Camões andou com o Duque de Braçança e a sua «Academia da Luz», no Alentejo, a estudar as aras do Endovélico “agarram-se” a este extrato da obra camoniana:
«Se dizem, fero Amor (o deus Cupido), que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
È porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano»
E daqui retiram terríveis conclusões que, por desconhecimento fundamentado das mesmas, não comentarei.
Por curiosidade, acrescente-se que em Vila Viçosa, os falsários, foram menos meticulosos nos alicerces da Capela de Santiago, onde “estava” o templo de Proserpina.

O verdadeiro TEMPLO do DEUS ENDOVÉLICO

Para aceder ao entendimento correto deste “problema Endovélico” é necessária uma abordagem ligeiramente distinta das formas como o seu estudo tem sido tentado. Na verdade, apenas a introdução de uma subtil pergunta entre o conhecimento adquirido, pode conduzir a novas conclusões. Isto é, possuímos num prato da balança (visualizemos assim), milhares de estudos sobre o tema Endovélico nas Universidades de todo o mundo, e, em mais Universidades ainda, no outro prato desta avaliação, o peso colossal dessa fantástica cultura greco-romana que se rendeu, embora adaptando-se, conforme se pode verificar nas inúmeras aras votativas, com profunda convicção, portanto fé, ao culto tópico, local, de um Deus celta perdido entre as faldas da Serra d´Ossa. Foi uma das características da romanização, pensarão muitos, e eu devo responder-lhes que não. Com esta convicção com que adoraram Endovélico e Atégina (Proserpina), com esta fé com que os tomaram por seus Deuses Superiores, não é uma característica da romanização. Os romanos não hostilizavam, toleravam (lembremo-nos que estamos a falar de sociedades profundamente religiosas), mas não se entregavam desta forma aos cultos nativos. Necessariamente, existiram condições especiais no culto destes Deuses celtas, em que a cultura-greco romana se reviu, em que se sensibilizou, em que comungou, através do sentido do divino dos locais, uma identidade total com os princípios profundos que emanavam dos seus próprios deuses, do seu Panteão original. E é aqui que devemos introduzir esta pergunta. Que ligações tão similares, entre conceções da espiritualidade, entre princípios fundamentais que lhe regulavam os nascimentos, as colheitas, as doenças, os amores, tudo afinal, da sua vida, podiam existir entre estruturas sociais tão diversas? E a resposta, é a vida depois da morte. No submundo, habitavam as almas dos seus mortos, e esse submundo, era o reino do Endovélico, e de Atégina, (Proserpina que correspondia à deusa grega Perséfone, quando com ele se recolhia nos meses obscuros. Na mitologia grega e romana, “Os Infernos” eram os lugares subterrâneos onde as almas desciam depois da morte para serem julgadas. Constituía crença geral, tanto na Grécia como em Roma, que todas as cavernas cuja profundidade não fosse sondada pelo homem, eram entradas para “Os Infernos”. Na Grécia, a sua entrada era pelas cavernas próximas ao cabo Averno, perto do Peloponeso, e em Roma era pelas grutas de Cumas, perto do lago Averno. Esta era a “cosmografia” dos Infernos: 1ª Nível – Os palácios da Noite, do Sono, e dos Sonhos. 2º Nível – O Inferno, o dos Maus. 3º Nível – Tártaro – O dos Deuses expulsos do Olimpo. 4º Nível – Os Campos Elísios – Morada dos Deuses Superiores.
Só assim se entende como os invasores, provenientes destas culturas, ficaram absolutamente seduzidos perante este Endovélico, Deus do submundo, das forças ctónicas, telúricas, elo entre a vida e a morte, «praestantissimi et praesentissimi (sempre ativo e presente), que transmitia as indicações divinas desde as profundezas por intermédio de sonhos e visões, ou através dos oráculos. Daqui resulta pois, obrigatoriamente, que o Templo original do Grande Endovélico celta será uma ampla caverna, uma passagem para os seus domínios, o submundo.
E onde existe, nessa zona, uma caverna com tais dimensões? Na verdade, existirão dezenas. As mais superficiais, por vezes cedem sob o peso da cobertura, formando profundos “buracos” no chão dos milenares olivais (nos últimos anos, que eu saiba, abriram dois, um na Herdade da Pipeira junto à transformação de mármore, e outro a poucos metros do olival dos Vilares. Outra dessas cavernas, já aqui o referimos, dava acesso à natação dos rapazes na “Tapada das Caraças”, e outras, de enorme profundidade são “algares”, que os geólogos (espeleólogos) estudam, mergulhando na “Passagem do Rio Obscuro” (Ad Atrum Flamen). É aqui, nesta faixa de terreno, prolongamento em linha reta dos “Villares” de Bencatel e Alandroal, Carambô, dos algares Morenas e Stº António, dos bairros Alfarrobeira e S. Bento (com estrada para os “Villares de Pardais”), a enigmática capela de S. Bento e olivais circundantes (onde abundam os vestígios de cerâmica), e depois, alto da Carrapatoza (significava barranco), Herdade da Pipeira (onde mais tarde se implantou um convento da Ordem de S. Bento), no sentido dos “Moinhos de Vento” (englobando a “Tapada das Moedas”), que o Templo mítico de Endovélico se revelará, quando à sua volta, os arqueólogos “desenterrarem” dos torrões alentejanos, uma página fantástica da História, uma cidade pré-romana com 2.400 anos (talvez mais) de existência, a lendária Lacóbriga.

A CIDADE de LACÓBRIGA, e a sua localização

Zona vermelha – Localização de Lacóbriga (virada a nascente, Espanha).
1-Fonte / Azenha das Freiras – Possível localização do Templo a Fontoura.
2 e 3 - Algares (Morenas e Stº António).
4 e 5 – Vestígios da cidade, sob a Escola Secundária e o bairro de S. Bento (que depois foram “escondidos”).
6 e 7 – Cavernas superficiais que cederam recentemente.
8 – Ribeira do Alcalate (linha das fortalezas)
9 – Tapada das Caraças (caverna e fonte – “escondidos”)
10 – Tapada das Moedas.

E então, tudo fará sentido. A fama de Endovèlico atraiu os peregrinos, e em volta do culto, tendo por base o “negócio” da fé (o crescimento da cidade de Fátima a partir do pequeno povoado das aparições, continua a ser um bom exemplo), cresceu Lacóbriga. Foi essa capacidade de desenvolvimento deste complexo que o cartaginês Bahodes antecipou, ao solicitar autorização para lhe erguer fundamentos com outra grandiosidade tornando-o mais apelativo à cultura greco-romana, e Maharbal, dando continuidade ao projeto, ergueu na nova cidade um Templo grandioso. Depois, nas centenas de anos sob o domínio do Império Romano, atingiu certamente o seu auge, «em tempo dos romanos foi cidade muy famosa (relembro as palavras de Bautista de Castro), e lembra-se dela Baptista Mantuano quando diz que erigira o Senado (teria Senado) sete estátuas a Ardiboro…». Relacionada com esta história, de entre os escritos de Rocha Espanca, retirei esta curiosidade «… Miguel João Azambuja, meu amigo, tem-me afirmado repetidas vezes que o primo, Frei Francisco, possuía um livro pequeno em oitava, escrito em português, no qual se dizia que, desde Estremoz ao Alandroal, haviam sido levantadas sete estátuas em diversos pontos, asseverando o Frade que aquela cabeça (referia-se à cabeça de uma estátua romana, depois enviada para Lisboa) era uma das sobreditas sete. Mas infelizmente não me sabe dizer o título do livrinho, nem do seu autor, de forma que ainda o não topei». Desta guerra com os Alanos (por volta do ano 410) aqui subentendida (cada estátua corresponderia a uma conquista de Lacóbriga pelos novos invasores e posterior reconquista pelo capitão romano Ardiboro), a cidade sobreviveu sem dúvida pois, no ano de 633, no 4º Concílio de Toledo (época visigótica) aparece a assinatura do seu Bispo. No entanto, no Concílio seguinte (o 5º, ano de 638) na mesma cidade de Toledo, regista-se um facto estranho que continua a confundir-me. A assinatura do Bispo Lacobriguense não surge, e, em seu lugar assina o Bispo Arcobricense (de Arcóbriga, outra das cidades celtas indicadas por Ptolemeu e ainda não identificadas no terreno). Poderá ser uma indicação de que Lacóbriga e Arcóbriga eram duas cidades próximas que alternavam a cadeira do bispado. Ao observar as ameias de uma outra fortaleza na fig 4, demarcada no rectângulo vermelho (e que, de outra forma não lhe sei explicar a origem), pensei na hipótese de estarmos em presença de uma “dipolis” (nome atribuído pelos historiadores a uma cidade dupla), mas, ao verificar a situação da vila dos Arcos em plena bacia hidrográfica do anticlinal de Estremoz (fig 4 ), inclino-me também para a possibilidade desta vila ser uma boa candidata para a localização de Arcóbriga. Devo contudo acrescentar, não tenho qualquer outro indício que possa reforçar alguma destas hipóteses. Voltando a centrar-nos na “nossa” Lacóbriga, agora chamada Al Zawiya pois entramos no período muçulmano (depois do ano 710), mas da escassez de dados disponíveis pouco podemos inferir. Pertenceu certamente à taifa de Badajoz, o historiador António Rey diz-nos que Alcalate (o ribeiro) significa Linha das Fortalezas, o que pressupõe fortificações avançadas frente à cidade (nessa área, Leite de Vasconcelos, li no seu espólio, procedeu a escavações na procura de um cemitério a que não volta a fazer referências), mas penso que é seguro afirmar que não resistiu ao extremismo religioso dos Almorávidas. Não é mencionada nas reconquistas cristãs com a queda de Juromenha e de outras “praças fortes” da fronteira, e apenas voltamos a revê-la com o nome de Landroal, um povoado humilde, encolhido junto ao castelo, insignificante na História que nos contaram a partir do reinado de D. Dinis, e onde, qual sinal de comiseração, nos compensaram com uma estrofe nos Lusíadas, e de que nos sentimos muito orgulhosos, porque o Pêro Rodrigues recuperou meia-dúzia de vacas aos espanhóis… “Obrigadinho”. E os nossos avós celtas, onde estão? E os nossos avós romanos, onde estão? E os nossos avós Alanos, onde estão? E os nossos avós visigóticos, onde estão? E os nossos avós muçulmanos, onde estão?
Onde está o registo do nosso verdadeiro passado? Onde está a documentação, que as seguintes palavras fazem pressupor?
«Para homenagear gentes do Alandroal doutras eras já passadas, lê-se “A primeira parte da crónica de El-rei D. João I de Boa Memória”, da autoria do Cronista-mor Fernão Lopes e depara-se com este parágrafo:»
«Depois de lisboa, talvez nenhuma povoação seja mais vezes referida do que o Alandroal, uma obscura Vila de poucos moradores, onde tanto corriam os homens a pé como a cavalo… Por ali perto tinham sede algumas importantes comendas da ordem de Avis; é possível que algum dos seus freires tenha tomado a peito pôr em escrito o que viu da guerra que levou o mestre daquela ordem à culminância do outro.»
Onde está essa “abundância” de referências que o cronista refere? Que guerras foram essas entre as ordens religiosas? O que se passou de tão grave nessa zona, que tudo desapareceu e, numa incrível mistificação, os detentores do poder material, espiritual, e da criação escrita, até o nome dos seus antepassados esconderam entre a areia e o vento das longínquas praias algarvias? No silêncio da incompreensão, há que entender os Trovadores :
«Cresceu a devoção, foi-se ampliando / Esta de amor esplendida grandeza/ Que mais encobre, do que está mostrando / De vários cultos e de “grão” riqueza; / Que de ano em ano as regras observando / Uma só vez se mostra sua nobreza: / Se então tornais, vereis o mais oculto / Que agora vos proíbe o nosso culto.»
Braz de Mascarenhas/ Viriato Trágico/Est.199/Sobre o Endovélico/1685.

Muitas, inúmeras, são as perguntas que ficam a pairar sobre uma investigação com esta amplitude. Mas para nós, homens e mulheres do presente, há umas que, pela sua premência, sou obrigado a destacar. Os responsáveis locais acompanharam, arqueologicamente, no terreno, as obras de construção da inicial Escola Secundária do Alandroal, do bairro da Alfarrobeira, mais recentemente do bairro de S. Bento onde parece que «aí a coisa apareceu em grande», e, no presente, da urbanização da “Tapada das Caraças”(Que análise foi feita ao túnel antes de o demolirem? Onde está a fonte das famosas “caraças”?)? E, se esses acompanhamentos arqueológicos foram efetuados, o que consta nos seus pareceres? Não pretendo, ao levantar estas questões, indagar culpabilidades, ninguém, estou certo, embora as motivações pudessem abranger interesses vários, cometeria um “homicídio” cultural desta dimensão, se, remotamente, suspeitasse da importância dos vestígios escondidos. Em boa verdade, fazer contas com o passado não altera o presente, mas refletir sobre ele, pode alterar o futuro.
Um abraço a Todos.
João Torcato Coelho Cardoso Justa







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