Monday, April 18, 2011

CASAS NOVAS DE MARES

Termina aqui a " Trilogia do Quadiana "
Relembramos que esta narrativa, tal como as outras que a antecederam, foi encontrada dentro de uma garrafa que estava encalhada num açude do rio.
O manuscrito não estava assinado e vinha redigido em língua castelhana.
A tradução, mais uma vez, é da responsabilidade de Eveline Sambraz.
O título também é da responsabilidade da tradutora.

« Casas Novas de Mares »

Quando Pablo Picasso completou oitenta anos de vida, lá pelo outono de 1961, reuniu na sua propriedade, no sul de França, uma grande quantidade de amigos; dessa comemoração constou uma tourada privada em que actuou, entre outros, Luís Miguel Domingín, ele próprio amigo de Picasso; pois foi durante os festejos de aniversário do pintor, que se desenharam os primeiros planos da minha entrada em Portugal.
A direcção do PCE ( Partido Comunista de Espanha ) há muito que vinha tentando montar em Portugal, uma organização de retaguarda, afim de apoiar o aparelho clandestino do partido que operava no interior de Espanha. Seria eu o responsável por essa tarefa.
Hoje - trinta anos depois - ao relembrar esses tempos, quero aqui deixar um sinal de muita saudade para aquele que primeiro se lembrou da forma como eu poderia entrar em Portugal : Domingo Dominguín; nem mais; Domingo Dominguín, irmão de Luís Miguel Dominguín.
Por essa época eu vivia em Espanha, incorporado na organização clandestina do partido, sempre munido de documentos falsos que essa mesma organização me facultava; documentos de tal maneira bem feitos que nada os distinguia dos autênticos.
Também por essa época, já Domingo Domingín era dirigente do partido, embora não vivesse em clandestinidade; não que se ignorasse a forma como pensava, todos sabiam da sua ligação ao partido, inclusive a polícia política de Franco tinha conhecimento disso, mas o facto de ser irmão do melhor matador de touros de Espanha nessa altura, e também o facto de pertencer a uma família que, sem reservas, sempre tinha apoiado o regime franquista, fazia com que a polícia esperasse uma ocasião para o prender em flagrante; como, aliás, aconteceu mais tarde.
Luís Miguel Dominguín, que nunca se envolvera em política, era, no entanto, incapaz de negar fosse o que fosse ao irmão; assim, ali mesmo, durante a comemoração dos oitenta anos de Picasso, no sul de França, foi elaborado o plano que me colocaria em Portugal.
« Eu faria parte daquela corte de aficcionados que sempre acompanha os matadores de touros nas suas deslocações, quando Luís Miguel Dominguín se deslocasse a Badajoz, para actuar numa corrida, por altura da feira de São João, no verão seguinte. Pela minha parte, teria que assegurar a ligação com os camaradas do partido português, afim de poder ser recolhido em Elvas. »
Um mês antes da data da operação, tudo estava planeado ao mais pequeno pormenor : Depois da corrida, a comitiva, cerca de quinze pessoas, entre as quais Lúcia Bosé, mulher de Luís Miguel, iria jantar à pousada de Elvas; no regresso, a comitiva viria desfalcada, pois eu seguiria o meu caminho e não voltaria a Badajoz; todos os detalhes estavam assegurados, mesmo as autorizações para passagem na fronteira.
Como estas acções conspirativas são sempre rodeadas do maior segredo, apenas Luís Miguel Domingín sabia que eu não regressaria a Espanha; no entanto, sempre me pareceu que Lúcia Bosé, que era italiana, e em tempos tinha participado em algumas iniciativas do partido italiano, nomeadamente na festa anual do " L'Unitá ", estava a par do que se ia passar.
Bem dito, melhor feito.
No fim do jantar, à porta da pousada, e depois do reconhecimento, feito através dos sinais previamente combinados, meti-me num citroen boca de sapo e ala que se faz tarde; esta operação foi de tal forma bem executada que os restantes convivas só muito mais tarde se aperceberam da minha falta; para isso deve ter constituído motivo bastante as fortes libações durante a refeição; tanto quanto sei, tudo lhes correu da melhor maneira durante a viagem de regresso a Badajoz; nem a passagem da fronteira foi problema.
Também, quem iria arranjar problemas ao maior matador de touros do mundo ! ?
Tomámos o caminho do sul; por uma estrada que me pareceu correr, mais ou menos paralela ao rio Quadiana, passando por várias localidades cujos nomes retive : Juromenha, São Brás dos Matos, Rosáro, Capelins; depois foi a vez de uma povoação muito dispersa que, acho, se chamava Santiago Maior, e por fim, chegámos à aldeia em que pernoitaria e de cujo nome jamais me esquecerei, pois nunca encontrei uma terra com um nome tão poético : Casas Novas de Mares.
Demorámos cerca de cinco horas em toda esta viagem, porque todas as estradas eram de terra batida, estando algumas em tão mau estado, que nos obrigavam a andar a passo de caracol, e a última coisa que queríamos era que o carro ficasse no fundo de algum daqueles buracos.
O meu companheiro parecia conhecer a região como as suas mãos, o que não o impediu de estar alerta durante toda a viagem, pois, segundo me disse, era usual haver patrulhas da guarda fronteiriça, já que se tratava duma zona de contrabando; entregou-me a um casal de velhotes, num monte isolado, que tinham à minha espera uma ceia e me convidaram a comer, pedindo desculpa pela modéstia da refeição.
Eu, um intelectual, vindo de famílias abastadas, habituado a uma vida citadina e que, por opção, me encontrava naquela situação, perdido algures no Alentejo, absolutamente dependente daquelas pessoas, senti que o internacionalismo, termo que eu utilizava frequentemente, quando me referia à luta de classes, estava bem representado ali; apesar dos anos de clandestinidade que já levava, apesar dos maus momentos que já passara, apesar da dureza que a vida clandestina sempre implica, apesar de pensar que estava bem curtido pela vida, ainda me emocionei.
Tive que esconder os olhos para que os meus hospedeiros não vissem o brilho que as lágrimas lhe deram.
O companheiro que me trouxe, João José Potra ( vim a saber o seu nome mais tarde, já depois da revolução de Abril ) depois de comer daquela ceia, muito rapidamente, despediu-se e avisou-me que no dia seguinte alguém apareceria para me levar para o próximo destino.
A cama em que dormi estava de acordo com a ceia : Simples, mas confortável.
Tudo se passou como previsto.
Passada uma semana já estava a trabalhar na organização dos pontos de apoio que ajudariam os companheiros que em Espanha lutavam contra o franquismo.
E de tal maneira esses pontos de apoio funcionaram, que se mantiveram activos até à queda da ditadura no meu país, já em meados da década de setenta.
Mas ainda hoje, passados trinta anos, de todos os que me ajudaram nessa noite, aqueles que mais vivamente me ficaram na memória, continua a ser o casal de companheiros que, numa aldeia perdida da planície alentejana, me deu guarida por uma noite.
FIM

Wednesday, April 06, 2011

BADAJOZ

« Esta é a segunda narrativa das três que fazem parte da " TRILOGIA DO QUADIANA " .

Lembramos que estes escritos foram encontrados dentro duma garrafa, encalhada num açude do rio.
Vinham escritos em língua castelhana e não estavam assinados.
A tradução é da responsabilidade de Eveline Sambraz.
O título é também da responsabilidade da tradutora. »

Nota da tradutora === " Na organização da narrativa, sobretudo na forma como está paragrafada, foi respeitado o original "

BADAJOZ

Quando Rufino Potra chegou à estação do Levante, naquela manhã de Abril de 1936, em Madrid, tinha acabado de chegar o combóio de Valência. Ia esperar Largo Maltese, um amigo doutro amigo a quem ele tinha prometido ajudar na busca dum mapa antigo que estaria na biblioteca de Badajoz. Esse mapa, pelos acasos do destino, fora parar a essa biblioteca, por testamento de um antigo navegador do século XIX que, depois passar grande parte da sua vida nas colónias espanholas da América Latina, acabara os seus dias em Badajoz, legando à cidade todo o seu espólio. Este espólio, estaria ainda por classificar, e jazia, há dezenas de anos, nas caves do edifício que albergava a biblioteca municipal. O amigo de Largo Maltese, também amigo do Rufino, sabendo que este era natural de Cheles, e que tinha feito os estudos preparatórios em Badajoz, conhecendo a cidade muito bem, não achara melhor solução que entregar-lhe o recém chegado. A Madrid de 1936 fervilhava de vida e de boatos. A vitória da Frente Popular dois meses antes, em eleições muito disputadas, tinha dado à cidade um movimento inusitado. Havia sempre muita gente a chegar, muita gente a partir e os comboios, apesar dos tradicionais atrasos dos caminhos de ferro espanhóis, andavam sempre apinhados. Excepcionalmente, a composição vinda de Valência tinha chegado dentro do horário. Foi preciso esperar um bom espaço de tempo, antes que se desfizesse a confusão dos que chegavam e dos que partiam, entre os gritos dos bagageiros que ofereciam os seus serviços, e o resfolgar das locomotivas. Quando aquela balbúrdia acalmou, Rufino, vislumbrou ao fundo do cais, um homem que nunca mais esqueceria. Não tanto pelo seu aspecto físico, mas sobretudo pelas situações porque iriam passar nos próximos dias. Era um homem alto, fisicamente bem constituído, muito moreno e exibia um farto bigode. As feições pareciam indicar que talvez pudesse ser mestiço. Embora a mistura de sangues se tivesse dado várias gerações antes, a verdade é que os lábios cheios e o cabelo um pouco encarapinhado, embora longo e caindo sobre os ombros, indiciavam a presença de antepassados negros na sua família. Estava vestido como os marinheiros sempre se vestem em terra : Calças de boca larga, botas de couro muito flexível, grosso camisolão de malha, com gola alta, e casacão de marinheiro. Ao ombro, como bagagem, trazia um grande saco de lona. Vale a pena falar um pouco mais deste homem já que a sua participação no decorrer desta narrativa será de muita importância. Cidadão espanhol, tinha nascido em Cuba no fim do século dezanove, quando aquela ilha ainda era uma colónia espanhola. A guerra Hispano - Americana apanhara-o ainda criança e mudara-se com a família para o México, no início do século vinte. Aí, tivera uma vida aventurosa, sempre tendo o mar como cenário. O mar das Caraíbas, mais propriamente. Vinha em busca do tal mapa, porque nele estaria a chave da localização dum tesouro escondido pelos espanhóis, quando estes ainda dominavam o México. Um aventureiro, como facilmente se vê. Meio-irmão, segundo se sabia, de Corto Maltese, outro aventureiro. Quando se viram frente a frente e Rufino se apresentou, trocaram um vigoroso aperto de mão, tendo o visitante informado que tinha instalações reservadas num hotel do centro da cidade, mas que apenas tencionava demorar-se em Madrid, o tempo estritamente necessário. Tinha igualmente reservado um automóvel e queria partir para Badajoz o mais rapidamente possível. O hotel, um dos melhores da cidade, reconheceu Rufino, tinha realmente um quarto reservado e um automóvel pronto para partir. Combinaram partir no dia seguinte, mal o sol nascesse. Também se ajustou a dormida de Rufino no hotel, para evitar demoras de última hora. Parecia não faltar dinheiro ao recém chegado. Convém, para melhor se entender o que se vai seguir, dar uma explicação do ambiente que se vivia em Madrid por essa época : Os espanhóis tinham ido às urnas no dia 6 de Fevereiro passado, domingo de Carnaval. As eleições tinham sido ganhas pela Frente Popular que, entretanto, já tinha formado governo. O Primeiro Ministro da República de Espanha, don Miguel Azaña, desdobrava-se em esforços, não só para dar um rumo ao país, como para harmonizar os partidos de esquerda que, entre si, não se entendiam. Os vários partidos das direitas, que não aceitavam a derrota eleitoral, conspiravam abertamente contra o governo. Os tiroteios entre os falangistas e grupos da FAI ( Federação Anarquista Ibérica ), eram diários. A cidade fervilhava de boatos sobre assassinatos políticos e levantamentos militares. Todos os quartéis de Madrid estavam de prevenção rigorosa. O clima social e político da capital de Espanha era de cortar à faca. Dizia-se que os partidos das direitas estavam a armar os seus militantes, porque estava iminente um golpe de estado contra a república. Foi esta cidade que os nossos dois conhecidos deixaram para trás naquele dia do fim de Abril, quando se puseram a caminho de Badajoz. Ao fim do dia, já instalados nesta cidade da Extremadura espanhola, recolheram cedo à pensão onde se hospedaram, pois tencionavam começar a procurar o mapa logo pela manhã. Munidos das respectivas autorizações, passadas pelo Ayuntamiento de Badajoz, aonde Largo Maltese se apresentara como historiador de assuntos relacionados com as antigas colónias de Espanha nas Américas, às dez horas da manhã já estavam a abrir os caixotes do espólio a que fizemos referência. Não encontraram nada. Do mapa, nem sombra. Por mais que uma vez passaram a pente fino todo o espólio, mas sem qualquer resultado. Ainda falaram com o responsável da biblioteca que, muito assustado e em grande atrapalhação, sem motivo aparente, os informara que os caixotes estavam naquela cave, tanto quanto ele sabia, há mais de cinquenta anos, sem nunca terem sido abertos. Desanimado, mas conformado com o resultado da pesquisa, Largo Maltese, disse a Rufino que teria que continuar a busca noutros lugares, pois tinha a certeza que o mapa existia. E o tesouro, por suposto, também. E ele, agora mais do que nunca, estava disposto a deitar-lhe a mão. Fariam uma última tentativa no dia seguinte. Depois, fosse qual fosse o resultado, regressariam a Madrid. No dia seguinte, voltaram a passar em revista todo o espólio, chegando à mesma conclusão : O mapa não se encontrava ali. Foi nessa altura que repararam em vários caixotes que também se encontravam na cave, embora um pouco afastados. Os caixotes pareciam em muito bom estado, decerto não se encontravam naquele lugar há muito tempo. Rufino, que estava muito desiludido com o resultado da busca, por raiva e descargo de consciência, meteu a alavanca às tábuas e retirou a tampa. Surpreendido, verificou que o caixote estava cheio de metralhadoras e carregadores de munições. As armas eram novas e de modelo relativamente recente. Depois de chamar Largo Maltese, que ainda se encontrava junto do espólio que os tinha levado a Badajoz, numa última tentativa para encontrar o mapa, abriram o resto dos caixotes e confirmaram que todos continham o mesmo tipo de armas. Quando saíram da biblioteca, foram de imediato para o quartel do governo militar e falaram com o coronel que exercia as funções de governador da cidade, dando-lhe conta do que tinham encontrado.
Ainda se demoraram mais dois dias na cidade. O suficiente para saberem que aquelas armas estavam a entrar em Badajoz, vindas de Portugal, e se destinavam a armar os militantes falangistas.
Apenas esperavam que se desse o levantamento militar.
O levantamento militar deu-se a 17 de Julho de 1936.
Quanto aos dois intervenientes, Largo Maltese e Rufino Potra, depois de se despedirem, em Madrid, no dia 12 de Maio de 1936, nunca mais se encontraram, nem souberam um do outro.
Rufino Potra não chegou a saber se Largo Maltese acabou por encontrar o tesouro.
Nem Largo Maltese teve conhecimento dos trabalhos em que Rufino Potra se viu durante a guerra civil que se seguiu.

FIM