Saturday, December 03, 2011

MEMÓRIAS do Rufino Casablanca

Extracto da novela « Peças Soltas no Interior da Circunferência »

Do capítulo VII

« A Ala dos Caçadores »

.... e a mulher que acabava de surgir na semi-obscuridade em que a sala principal da “ala dos caçadores “ se encontrava, olhou para o espelho que trinta anos antes – quando abandonara a casa materna – também reflectira a sua imagem. Estava agora defronte do enorme espelho, de pé, a examinar a figura que lhe era devolvida. Era bonita, agora e antes, já lá iam tantos anos!; de uma beleza que poderia ser apodada de exótica. Tinha uns espantados olhos cinzentos, claros ou escuros, consoante o estado de espírito, mas sempre surpreendidos pelo mundo que a cada momento admiravam. Agora mesmo, ainda se espantava com a imagem que o espelho lhe devolvia e em que ela não acreditava: Via uma mulher a aproximar-se dos cinquenta anos, contemplando-se a si própria num traje de fim de semana, calças e camisolão largos, que tinham pertencido a sua mãe. Viera para pôr em ordem a parte da casa a que chamavam a ala dos caçadores, pois tencionava mudar-se definitivamente para o Monte do Meio.
Baldada intenção essa, a de arrumar a casa. Ficaria para depois, estava bem de ver.
Mal chegou, entrou em contacto com as primas que restavam do quarteto infernal que em tempos tinham constituído, e durante uma semana, ficaram estendidas naqueles velhos cadeirões, alimentando-se mal e falando todas ao mesmo tempo. Com longos silêncios pelo meio. Silêncios tão eloquentes como as palavras. Dormindo pouco, fumando e bebendo muito. Acertando contas com o passado, sobretudo com a recordação de Rosalía.
Eram a penúltima geração da família. A geração que tinha nascido no início da década de cinquenta, todas mulheres.
Os filhos desta geração já se encontravam espalhados pelo mundo – “ Fazendo o estágio da vida “ – no dizer castiço da Guadalupe, cujo filho se encontrava em Angola como piloto duma companhia aérea.
A única que tinha os filhos consigo era a Evita, que padecia de uma doença oncológica que, com frequência, obrigava ao seu internamento devido à violência dos tratamentos. – “ Uns chatos, eles e as mulheres “ – queixava-se a Evita. – “ Como se eu não me desenrascasse sozinha “ – acrescentava. Outra coisa que a fazia perder a paciência eram as visitas e telefonemas constantes de antigos amantes e namorados, preocupados com o seu estado. – “ Outros chatos. Como é que eu me deixei prender, em tempos que já lá vão, a alguns desses imbecis ? “ – perguntava, irritada, perante a estupefacção das outras.
E enquanto assim falava, ia enrolando mais um charro. A Guadalupe, de todas a mais calma, a que sempre fora a âncora do quarteto, a que mantinha os pés na terra, fosse qual fosse a situação, de imediato lhe tirava o paivante das mãos e o fumava ela, enquanto lhe ajeitava o lenço na cabeça.
A última vez que aquele grupo de mulheres, todas a raiar os cinquenta anos, primas irmãs e amigas, se tinha encontrado, seis meses antes, fora no funeral da Rosalía, cujo automóvel se enfiara debaixo de um camião na carretera entre Badajoz e Sevilha. Para todos tinha sido um acidente, inclusive para as autoridades e para os membros mais novos da família, mas nenhuma delas acreditava nisso. A Rosalía suicidara-se! Atirara o carro para debaixo das rodas do camião. Todas disso tinham a certeza, embora não houvesse provas concretas. A Guadalupe bem procurara alguma pista que as elucidasse, dando voltas e mais voltas aos baús, secretárias e armários da casa de Terena, casa que a Rosalía habitara desde que se separara do marido, em busca de uma certeza de que todas precisavam para arrumar a recordação e, finalmente, terem descanso.
Infrutífera busca.
Os últimos seis meses tinham sido vividos em constante e doloroso desassossego de espírito. A incerteza do que se tinha passado transformara a vida daquelas três mulheres.
E aquela semana que passaram juntas na sala grande da ala dos caçadores, no Monte do Meio, mais não fora que um luto colectivo. O luto que ainda não tinham feito em conjunto.
Não admira, portanto, que a Rosalía fosse o principal motivo de conversa durante essa semana.
Escalpelizaram-lhe a vida e os amores, as raivas e as paixões, a inteligência e as teimosias, os erros que teimara em cometer, as aventuras em que embarcara e as mágoas que curtira sozinha, enquanto todas as outras seguiram para outras vidas e outras paragens. Sobretudo depois do quarteto se desfazer.
Foi a Rosalía a presença mais constante durante aquela semana de ajustar contas com a vida.
E com a morte.
Estaria essa semana para continuar, transformar-se-ia num mês ou em dois, se não se desse a chegada do João António e da Rosário, respectivamente viúvo e filha da Rosalía.
Vinham para ficar uns tempos em Portugal.
Vivendo em Sevilha, e tendo sido informados pelos filhos de Evita, que aquela geração de mulheres estava encafuada há uma semana na ala dos caçadores, sem darem mostras de querer terminar a reunião, e sabendo todos que as mulheres Rodriguez Potra não tinham perto nem longe, conhecendo as suas inquietações e angustias, resolveram aparecer para tentar pôr termo a qualquer decisão mais radical que pudessem tomar.
Os dois filhos de Evita que também já tinham rondado o monte, tentando acabar com aquele conclave, mas tinham sido corridos com maus modos e com o argumento que os encontros dos mais velhos, naquela família, não eram interrompidos pela vontade dos gaiatos. Além disso, há séculos que aquela família era um matriarcado, as mulheres é que mandavam, os homens apenas serviam para fazer os filhos que elas depois se encarregariam de criar. Foi com estas palavras que aqueles dois homens, gémeos, com quase trinta anos, já pais de família, foram postos fora do Monte do Meio. Que aguardassem ou então que voltassem para Lisboa, para suas casas, que era onde deviam estar. E que levassem com eles as respectivas mulheres e filhos. Esta última parte foi-lhes dita pela própria mãe. De nada valendo a preocupação que demonstravam pela saúde dela.
A chegada de João António e da filha alterou a vontade daquelas quatro mulheres. Fê-las encarar a realidade. Nada podiam fazer para trazer de volta a Rosalía. E a presença do marido e da filha, principalmente da filha, uma Rodriguez Potra, embora de tiragem mais recente, tornou impossível a continuação de uma conversa que estava a tornar-se doentia.
Esta situação era possível porque na família, há muitas gerações que não se faziam partilhas. Tudo era de todos e utilizável por todos. As três propriedades da família, espalhadas por um perímetro relativamente pequeno, que serviam de residência aos que se tinham mantido pela região, estavam sempre abertas aos que chegavam para passar uns tempos. Sempre assim tinha sido no passado e continuaria a ser enquanto as sucessivas gerações quisessem manter a tradição. A chegada de Rosário, acompanhada de seu pai, para passar uns tempos no Monte do Meio, foi respeitada pelas mulheres mais velhas, colocando fim àquilo que já parecia uma paranóia.

Quanto à mulher com que abriu este capítulo da narrativa, a que se estava mirando no espelho, continuou a arranjar ao seu jeito a ala dos caçadores, com vista a uma mudança, mais ou menos definitiva, para o Monte do Meio, não apenas porque se tinha cansado da cidade, mas também porque a Evita iria precisar de quem a acompanhasse no mau momento porque estava a passar, já que o relacionamento da prima com os filhos e as noras não era o melhor, conforme já ficou bem claro.
Rosário, assim se chamava esta mulher.
Convém explicar que um dos hábitos enraizados nesta família, era o de dar às gerações mais novas os mesmos nomes da geração anterior. Às filhas nunca era dado o nome das mães, mas sempre tomavam o nome das tias ou primas. Assim, tanto quanto as recordações recuavam no passado, sempre repetidas pelos mais velhos, e os documentos e fotografias permitiam comprovar, havia uma infinidade de Matildas, Guadalupes, Rosalías, Evas e Rosários em todas as gerações. Nos raros nascimentos de filhos varões era utilizada a mesma prática. E aquando dos casamentos, a parte que passava a integrar a família, era sempre previamente informada de que a escolha do nome das crianças que viessem a nascer, era sempre decidida pelo membro do casal que pertencia aos Rodriguez Potra. Nem sempre os noivos – ou noivas – aceitaram essas condições, tendo havido noivados que foram desfeitos à beira do casamento por esse motivo.
Nunca, porém, a tradição fora abandonada.
Rufino Casablanca
Monte do Meio – Janeiro de 2000