Wednesday, September 26, 2012

PLÍNIO, O BORBOLETA

O Borboleta? Também eu me interroguei.
Porque é que o rapaz se havia de chamar Borboleta.
E mais me interroguei por lhe chamarem também Passarinho e, muito mais surpreso fiquei quando alguém me disse que tinha mais uma alcunha, Passarinha.
Quando alguém me disse? Esta é de “cabo de esquadra” porque ninguém mo disse.
Certo é, de olhos fechados, quando não se vê ninguém e falamos com tanta gente, senhores de toda a liberdade do Mundo, imaginamos.
Idealizei o Borboleta, vi o Borboleta, dialoguei com ele.
Naquele dia estava simpático e conversador e começou a contar-me a sua história.

A História
- Plínio, desculpa mas eu não te posso tratar por tu, não te conheço e não quero falar contigo sem te ver, - disse-lhe com algum receio.
- Trate -me por tu, sei que lhe dá mais jeito e não abra o olho, - e continuou, - no meu tempo, no tempo do respeito, os homens tratavam os rapazes por tu e os rapazes tratavam os homens por vossemecê.  
Esta frase soou-me como uma ordem, confundiu-me e indigno-me - quem será esta criatura ou quem se julga ser para me dar esta ordem? - pensei, de mim para mim.
- Se abrir os olhos esfumar-me-ei como fumo da lenha de sobro - implorou-me.
 Não pude dizer que não e, temporizando, continuei o diálogo.
- No teu tempo, Plínio? - mas de que época és tu? - interroguei-o.
- Da época do seu avô? - disse-me com rapidez.
Comoveu-me, quem não se comove, na idade da saudade, ao ouvir falar dos entes queridos? Os meus olhos humedeceram.
A conversa começara a interessar-me. Far-me-ia recordar o meu avô de Terena ou do Alandroal. Iria regressar à minha infância, nalgumas recordações relatadas pelo Borboleta.
Sem querer agitei-me. Plínio notara-o e voltou-me a dizer-me - se abrir os olhos eu desapareço.
Não havia dúvida, Plínio tomava conta de mim, conduzia-me aonde ele bem queria, como alguém que conduzisse um animal. E eu agradava-me aquela condução, estava a sentir-me bem, era, por estranho que pareça, um cego que lhe agradava não ver.
A determinada altura disse-me - esta é a história da minha adolescência e da minha meninice, morri cedo.
- A tua história é trágica, Plínio? - perguntei-lhe ansioso.   

O começo
Plínio silenciou-se por momentos, olhei para ele e vi que se concentrara.
Respeitei o seu silêncio e esperei que começasse a contar a sua história.
- Esta foi a mais linda coincidência com que me deparei após a minha morte.
 O senhor pensou num rapaz chamado Borboleta e eu apareci para contar a minha história. O seu sonho foi a minha realidade, - interrompi-o.
- Plínio, não te estarás a aproveitar do meu sonho? Não estarás a roubá-lo a minha imaginação?- mesmo dizendo isto com toda a brandura do mundo, pensei que o rapaz se iria zangar.
- Não, - respondeu sem alterar a voz, sinal que não se zangara, e continuou.
- Com o decorrer da minha narração verá que os fatos de que falo são verdadeiros.
- Também te chamavam Passarinho? - perguntei.
- Sim, foi a minha primeira alcunha, - respondeu-me e explicou o porquê.

A primeira explicação
- Nasci de uma família que se podia chamar de remediada.
Ao nascer a minha mãe não conseguiu criar leite durante uma semana e durante esse tempo foi amamentado por duas parturientes.
Quando a minha mãe teve leite encontrava-me muito débil, mesmo sendo depois alimentado a leite de cabra e de vaca. Apesar de todos os esforços dos meus pais não consegui ter meninice igual aos outros rapazes Não medrei.
Quando veio a escola, aprendi sem nenhuma dificuldade, mas nos jogos e apesar da minha vontade e coragem ficava sempre entre os últimos.
Sucedeu assim com o jogo do “avincão” “abelharda”.
Não perdi a coragem e tentei a bola, onde me refugiei a guarda-redes.
Nem nas bolas rasteiras, nem nas bolas altas tinha dificuldade. Bastava dar-lhe um jeito, para que a bola, com a força que trazia, tomasse efeito e não entrasse na baliza.
Um dia ao encaixar uma bola, que vinha com muita força, fui parar dentro da baliza, encostando-me às malhas traseiras.
 Os meus companheiros chamaram-me ”menina de leque”, outros de Passarinho. Pegou o Passarinho.
Assim me explicou, o rapaz, como apanhou a alcunha de Passarinho.

A explicação de Passarinha
- Refugiei-me no jogo da semana e do hidroavião.
Era leve e rápido. Depressa me adaptei ao jogo. O meu jeito, um pouco afeminado, dava-me uma certa graciosidade ao jogar.
Este jogo era atribuído às meninas e logo alguns rapazes me começaram a chamar de Passarinha.
Devo-lhe confessar senhor Helder, - mais uma vez o interrompi. Senhor Helder? como descobriste o meu nome, Plínio?
- Entrei no seu imaginário. Foi fácil uma vez que o senhor já tinha idealizado as minhas alcunhas, - justificou-se e eu concordei.
- O imaginário é um mundo onde cabemos todos, basta sabê-lo utilizar.
Plínio pareceu sentir o efeito desta frase, entristeceu-se e sentou-se numa laje que pela sua frieza mais parecia um bocado de um iceberg.
Levantou a vista e encarou-me retomando a frase.
- Confessou-lhe que foi aqui que comecei a ser um sonhador ou um realista, conforme se entenda. As raparigas adoravam-me e confiavam-se em mim. Muitas pediam-me conselhos. Como haviam de proceder perante os pais, perante os namoricos que principiavam hoje e acabavam amanhã.
O meu pai cedo me confiou algumas tarefas de menor responsabilidade, parecia que toda a gente gostava de mim, - era um desabafo, uma amargura a denunciar um revés de vida e continuou sem alterar a voz, - depois apareceu a Maria Pulquéria.

A terceira explicação
- A Maria Pulquéria era a menina mais bonita da escola.
Cabelos louros que logo pela manhazinha e banhados pelo Sol outonal ou primaveril brilhavam como ouro. Olhos azuis irrequietos e cintilantes. Corpo escultural, curvilíneo, adorável. Cedo fixei a sua imagem recordando-a sempre quando não estava comigo, - pensei em interrompe-lo, mas preferi deixá-lo continuar - não gostei de mais ninguém, - conclui no mesmo tom magoado.



- Plínio gostava de ouvir a tua história amorosa completa, - pedi-lhe.
- Com todo o gosto Amigo, - Amigo?, - deixei escapar surpreendido.
- Amigo, sim senhor Helder, - reforçou Plínio, comovendo-me uma vez mais.
- As pessoas que sabem escutar, que nos dão atenção, que vivem os problemas de cada um, só podem ser Amigos.
- Por favor, Plínio, mesmo no imaginário onde nos encontramos poupa-me à comoção, aliás, já não sei se este diálogo é uma conversa de vivos ou de mortos, - disse isto denunciando alguma ansiedade, que não escapou ao meu interlocutor.
- Que importância tem no ambiente em que nos encontramos, estarmos vivos ou mortos. O senhor está de olhos fechados, mas vivo e a julgar-se já morto, e eu de olhos abertos, morto a fingir-me vivo.
O grau de relatividade é o mesmo para ambos, - e continuou
- Há entre nós uma razão e duas verdades, - Plínio pronunciou esta frase com uma voz assustadora, parecia divina e ordenou-me.
- Escreva um 6, - escrevo um 6, sem papel, sem caneta, nem lápis e de olhos fechados, - disse surpreendido.
- Escreva na atmosfera, ainda está vivo, - ordenou-me com a mesma voz, mas ainda mais acentuada, que me levou a pensar que eu não iria sair vivo deste imaginário.
- O senhor escreveu seis e eu do lado oposto leio nove. Se trocarmos de lugar a leitura é invertida, mas a algarismo é a mesmo e só um, provocando duas interpretações, duas verdades. Os Homens justos nunca fogem à razão que se alcança dos factos observados. A razão é eternamente imutável.
Depois respirou com alguma dificuldade e o seu rosto teve uma pequena mas bem visível transformação.
 - Estou cansado. Os mortos quando trabalham e se comovem, também se cansam.
Descansamos uns minutos - disse-me com uma voz de agradável audição, que me tranquilizou.
Com a decorrência da conversa Plínio surpreendia-me a cada momento.
Dissera-me que morrera cedo e demonstrava-me uma experiência de vida invulgar, própria de quem vivera uma eternidade.
Mesmo com os olhos fechados vi o rapaz adormecer deitado na laje que não parava de escorrer água. O corpo do Plínio estava abrasando.
Sem abrir os olhos adormeci.

A alcunha Borboleta.
Plínio ao acordar parecia outra pessoa. O seu corpo depressa alcançou a naturalidade de um ser vivo e começou a falar da Maria Pulquéria, da sua amada.
- Pela leveza e rapidez que eu me entregava no jogo da “semana” começou a chamar-me Borboleta. Se já me agradava estar perto das raparigas devido ao jogo, mais me agradou a alcunha vinda da Maria Pulquéria, - Plínio contava-me isto, completamente refeito do cansaço. O sono restabelecera-o e eu refresquei-me um pouco, parecendo sair do estado mórbido em que já me julgava encontrar.
- Vejo que és um romântico e com a tua grande capacidade de inteligência, conseguias superar as deficiências do teu corpo. Admiro-te por essa capacidade.
Ao ouvir estas palavras Plínio só sorriu.
- E a escola Plínio?- perguntei-lhe de chofre.

O tempo da escola
- Foi o começou do meu calvário, da nossa tragédia, - disse-me com uma voz tão magoada que me deu pena.
- Eu e a Pulquéria éramos os melhores e ao mesmo tempo os piores alunos da classe, quando chegavam os exames não passávamos, - interrompi-o.
- Como é que isso podia, acontecer, Plínio? enervavam-se?
- Não, fazíamos a propósito, - disse-me com um sorriso triste nos lábios.
- De propósito? - mas isso foi possível.
Com ar tranquilo foi descrevendo a sua aventura, contou que o namorico com a Maria começara com uns sorrisos e troca de olhares. Depois começaram a falar até que as desconfianças, as más-línguas os descobriram.
Ela era das da aldeia das Hortinhas o que dificultava a nossa relação. Decidimos, apesar de vigiados, chumbar nos exames, assim estaríamos mais tempo ao pé um do outro.
- Claro, duplicavam o tempo e, no último ano de exame como foi? - perguntei.
- Não houve exame. Tínhamos a certeza que após o exame nunca mais nos veríamos. Na véspera do exame da quarta classe, já com quinze anos feitos, devido ao atraso do carreiro que vinha buscar a Maria e trocando as voltas à professora, consegui dar-lhe um escrito.
Estarei à uma da manhã junto à cabana das bestas, vê se podes lá estar. Toma cuidado com o cão para que não ladre e procura não fazer barulho”,
- E ela foi?
- Sim tinha a certeza que não faltaria. Deu-se um imprevisto. Naquela noite, ou porque tivéssemos tido, pela primeira vez relações sexuais ou porque lhe apareceu a menstruação, ela sentiu dores horríveis e teve fortes hemorragias
Levaram-na a um médico em Vila Viçosa e encerram-na no Seminário, que também albergava um núcleo de freiras.
- Imagino o sofrimento, o teu e o dela, Plínio.
- Foi grande e doloroso, com o psíquico a sobrepor-se ao físico, mas durou pouco tempo. - ao dizer esta frase o rapaz baixou a cabeça e começou a dar, novamente, mostras de cansaço.
- Ela morreu? - perguntei com ansiedade.
- Morreu ao sétimo dia de entrar para o Seminário e eu morri no dia do seu funeral.

O funeral
- Decorria o mês Fevereiro, com fortes e frias chuvadas. Tive a sensação que algo diferente e anormal se iria passar comigo. Parecia que o mundo me caía em cima, toda a gente me apontava o dedo “foi ele” “foi ele que a matou”.
Mas há sempre alguém, há sempre uma alma que nos compreende, que nos estende a mão, um benfeitor que nos ajuda.
- E quem foi esse alguém, Plínio? como te ajudou? - perguntei-lhe com o intuito de o fazer sair um pouco do seu estado melancólico.
 - Foi o meu avô. Levou-me alimentos ao quarto, de onde só saí no dia do funeral. Consolou-me dizendo “violaste o tempo do respeito, não por roubares ou por ser mal-educado ou dizeres mal das pessoas, foi por amor, pelo amor de uma flor ainda em botão, que no dia em desabrochou, morreu. Nunca serás condenado pelos homens de boa vontade”.
- A vossa história é a mais linda história que ouvi contar, é comovente, acredita que um dia a tentarei escrever, - Plínio levantou a cabeça, o seu rosto alegrou-se um pouco, sorriu de mansinho. Um sorriso de quem é compreendido, um sorriso de gratidão. E continuou.
- Fui cedo para o cemitério para assistir ao funeral. Meti-me dentro de uma cova e tapei-me com um pano preto. Pareceu-me ter morrido por momentos, ser condenado por um sem fim de mãos. Naquele mar ameaçador e tumultuoso de acusações, emerge a mão salvadora, benfazeja, triunfante. “vem neto, tenho um esconderijo melhor do esse, o meu capote, ele te abrigará e te conduzirá ao caixão da tua amada”  e assim sucedeu.
Quando abriram o caixão, precipitei-me e dei dois beijos na Maria Pulquéria, ao mesmo tempo que o meu avô gritava “revive Maria, revive” e a multidão insensata, incapaz de nos compreender, respondia “matam-se, matam-se”.
O capote do meu avô pairou pelos ares, abriu caminho por entre a multidão, enfurecida e fugimos.
 Não sei se corri se voei, e sem querer, vi-me na ponte velha observando a água que corria impetuosa, parecendo procurar alguém.
Num barulho aterrador que parecia a queda de um corpo nas profundezas da terra, ouvi a voz da Maria Pulquéria dizer “salta Borboleta, salta”.
Levantei a vista e vi uma borboleta multicolor esvoaçar sobre a minha cabeça, tocou-me na cara parecendo beijar-me. Ao tentar agarrá-la caí à água.
- E morreste, - perguntei.
- Morri, - respondeu e continuou.
- Hoje dia 18-09-2012, às 2 horas da manhã partilhando este imaginário consigo, já duvido que esteja morto.
- Por favor Plínio, há pouco foi eu que estava confuso agora és tu que te estás a confundir. Tu estás morto. Os cento e cinquenta anos que nos separam não impediram esta conversa de comunhão e compreensão imaginativa, mostrando ao mundo, que o amor é o mais belo sentimento de ligação humana, mas começo a sentir cansado, por favor Plínio, deixa-me descansar um pouco, deixa-me abrir os olhos, - pedi-lhe suplicando.
Senti um forte abraço, senti o coração do Plínio a bater forte, senti o calor do seu corpo.
Ao contar a sua história Plínio reviveu.
Quando abri os olhos, mas ainda mal vendo e mal refeito das emoções, vi uma borboleta esvoaçar e sumir-se no horizonte, como o fumo de sobro a arder.
Já com vista clareada vi, em cima da minha secretária, o texto que vós estais a acabar de ler. A tragédia da Maria Pulquéria.

Helder Salgado
18-09-2012
 
 (TODAS AS PERSONAGENS SÃO FRUTO DA IMAGINAÇÃO DO AUTOR - QUALQUER SEMELHANÇA COM PESSOAS DA VIDA REAL SÃO PURA COINCIDÊNCIA)


    

   
 





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