Porque é que o rapaz se havia de
chamar Borboleta.
E mais me interroguei por lhe
chamarem também Passarinho e, muito mais surpreso fiquei quando alguém me disse
que tinha mais uma alcunha, Passarinha.
Quando alguém me disse? Esta é de “cabo de esquadra” porque ninguém
mo disse.
Certo é, de olhos fechados,
quando não se vê ninguém e falamos com tanta gente, senhores de toda a
liberdade do Mundo, imaginamos.
Idealizei o Borboleta, vi o
Borboleta, dialoguei com ele.
Naquele dia estava simpático e
conversador e começou a contar-me a sua história.
A História
- Plínio, desculpa mas eu não te posso tratar por tu, não te conheço e
não quero falar contigo sem te ver, - disse-lhe com algum receio.
- Trate -me por tu, sei que lhe dá mais jeito e não abra o olho, - e
continuou, - no meu tempo, no tempo do
respeito, os homens tratavam os rapazes por tu e os rapazes tratavam os homens
por vossemecê.
Esta frase soou-me como uma
ordem, confundiu-me e indigno-me - quem será esta criatura ou quem se julga ser
para me dar esta ordem? - pensei, de mim para mim.
- Se abrir os olhos esfumar-me-ei como fumo da lenha de sobro -
implorou-me.
Não pude dizer que não e, temporizando,
continuei o diálogo.
- No teu tempo, Plínio? - mas de que época és tu? - interroguei-o.
- Da época do seu avô? - disse-me com rapidez.
Comoveu-me, quem não se comove,
na idade da saudade, ao ouvir falar dos entes queridos? Os meus olhos
humedeceram.
A conversa começara a
interessar-me. Far-me-ia recordar o meu avô de Terena ou do Alandroal. Iria
regressar à minha infância, nalgumas recordações relatadas pelo Borboleta.
Sem querer agitei-me. Plínio
notara-o e voltou-me a dizer-me - se
abrir os olhos eu desapareço.
Não havia dúvida, Plínio tomava
conta de mim, conduzia-me aonde ele bem queria, como alguém que conduzisse um
animal. E eu agradava-me aquela condução, estava a sentir-me bem, era, por
estranho que pareça, um cego que lhe agradava não ver.
A determinada altura disse-me - esta é a história da minha adolescência e da
minha meninice, morri cedo.
- A tua história é trágica, Plínio? - perguntei-lhe ansioso.
O começo
Plínio silenciou-se por momentos,
olhei para ele e vi que se concentrara.
Respeitei o seu silêncio e
esperei que começasse a contar a sua história.
- Esta foi a mais linda coincidência com que me deparei após a minha
morte.
O senhor pensou num rapaz
chamado Borboleta e eu apareci para contar a minha história. O seu sonho foi a
minha realidade, - interrompi-o.
- Plínio, não te estarás a aproveitar do meu sonho? Não estarás a
roubá-lo a minha imaginação?- mesmo dizendo isto com toda a brandura do
mundo, pensei que o rapaz se iria zangar.
- Não, - respondeu sem
alterar a voz, sinal que não se zangara, e continuou.
- Com o decorrer da minha narração verá que os fatos de que falo são
verdadeiros.
- Também te chamavam Passarinho? - perguntei.
- Sim, foi a minha primeira alcunha, - respondeu-me e explicou o
porquê.
A primeira explicação
- Nasci de uma família que se podia chamar de remediada.
Ao nascer a minha mãe não conseguiu criar leite durante uma semana e
durante esse tempo foi amamentado por duas parturientes.
Quando a minha mãe teve leite encontrava-me muito débil, mesmo sendo
depois alimentado a leite de cabra e de vaca. Apesar de todos os esforços dos
meus pais não consegui ter meninice igual aos outros rapazes Não medrei.
Quando veio a escola, aprendi sem nenhuma dificuldade, mas nos jogos e
apesar da minha vontade e coragem ficava sempre entre os últimos.
Sucedeu assim com o jogo do “avincão” “abelharda”.
Não perdi a coragem e tentei a bola, onde me refugiei a guarda-redes.
Nem nas bolas rasteiras, nem nas bolas altas tinha dificuldade. Bastava
dar-lhe um jeito, para que a bola, com a força que trazia, tomasse efeito e não
entrasse na baliza.
Um dia ao encaixar uma bola, que vinha com muita força, fui parar
dentro da baliza, encostando-me às malhas traseiras.
Os meus companheiros chamaram-me
”menina de leque”, outros de Passarinho. Pegou o Passarinho.
Assim me explicou, o rapaz, como
apanhou a alcunha de Passarinho.
A explicação de Passarinha
- Refugiei-me no jogo da semana e do hidroavião.
Era leve e rápido. Depressa me adaptei ao jogo. O meu jeito, um pouco
afeminado, dava-me uma certa graciosidade ao jogar.
Este jogo era atribuído às meninas e logo alguns rapazes me começaram
a chamar de Passarinha.
Devo-lhe confessar senhor Helder, - mais uma vez o interrompi. Senhor Helder? como descobriste o meu
nome, Plínio?
- Entrei no seu imaginário. Foi fácil uma vez que o senhor já tinha
idealizado as minhas alcunhas, - justificou-se e eu concordei.
- O imaginário é um mundo onde cabemos todos, basta sabê-lo utilizar.
Plínio pareceu sentir o efeito
desta frase, entristeceu-se e sentou-se numa laje que pela sua frieza mais
parecia um bocado de um iceberg.
Levantou a vista e encarou-me
retomando a frase.
- Confessou-lhe que foi aqui que comecei a ser um sonhador ou um
realista, conforme se entenda. As raparigas adoravam-me e confiavam-se
O meu pai cedo me confiou algumas tarefas de menor responsabilidade,
parecia que toda a gente gostava de mim, - era um desabafo, uma amargura
a denunciar um revés de vida e continuou sem alterar a voz, - depois apareceu a Maria Pulquéria.
A terceira explicação
- A Maria Pulquéria era a menina mais bonita da escola.
Cabelos louros que logo pela manhazinha e banhados pelo Sol outonal
ou primaveril brilhavam como ouro. Olhos azuis irrequietos e cintilantes.
Corpo escultural, curvilíneo, adorável. Cedo fixei a sua imagem recordando-a
sempre quando não estava comigo, - pensei em interrompe-lo, mas preferi
deixá-lo continuar - não gostei de mais
ninguém, - conclui no mesmo tom magoado.
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- Plínio gostava de ouvir a tua história amorosa completa, -
pedi-lhe.
- Com todo o gosto Amigo, - Amigo?, - deixei escapar surpreendido.
- Amigo, sim senhor Helder, - reforçou Plínio, comovendo-me uma vez
mais.
- As pessoas que sabem escutar, que nos dão atenção, que vivem os
problemas de cada um, só podem ser Amigos.
- Por favor, Plínio, mesmo no imaginário onde nos encontramos
poupa-me à comoção, aliás, já não sei se este diálogo é uma conversa de vivos
ou de mortos, - disse isto denunciando alguma ansiedade, que não escapou
ao meu interlocutor.
- Que importância tem no ambiente em que nos encontramos, estarmos
vivos ou mortos. O senhor está de olhos fechados, mas vivo e a julgar-se já
morto, e eu de olhos abertos, morto a fingir-me vivo.
O grau de relatividade é o mesmo para ambos, - e continuou
- Há entre nós uma razão e duas verdades, - Plínio pronunciou esta
frase com uma voz assustadora, parecia divina e ordenou-me.
- Escreva um 6, - escrevo um
6, sem papel, sem caneta, nem
lápis e de olhos fechados, - disse surpreendido.
- Escreva na atmosfera, ainda está vivo, - ordenou-me com a mesma
voz, mas ainda mais acentuada, que me levou a pensar que eu não iria sair
vivo deste imaginário.
- O senhor escreveu seis e
eu do lado oposto leio nove. Se
trocarmos de lugar a leitura é invertida, mas a algarismo é a mesmo e só um,
provocando duas interpretações, duas verdades. Os Homens justos nunca fogem à
razão que se alcança dos factos observados. A razão é eternamente imutável.
Depois respirou com alguma
dificuldade e o seu rosto teve uma pequena mas bem visível transformação.
- Estou cansado. Os mortos
quando trabalham e se comovem, também se cansam.
Descansamos uns minutos - disse-me com uma voz de agradável
audição, que me tranquilizou.
Com a decorrência da conversa
Plínio surpreendia-me a cada momento.
Dissera-me que morrera cedo e
demonstrava-me uma experiência de vida invulgar, própria de quem vivera uma
eternidade.
Mesmo com os olhos fechados vi
o rapaz adormecer deitado na laje que não parava de escorrer água. O corpo do
Plínio estava abrasando.
Sem abrir os olhos adormeci.
A alcunha Borboleta.
Plínio ao acordar parecia outra
pessoa. O seu corpo depressa alcançou a naturalidade de um ser vivo e começou
a falar da Maria Pulquéria, da sua amada.
- Pela leveza e rapidez que eu me entregava no jogo da “semana” começou
a chamar-me Borboleta. Se já me agradava estar perto das raparigas devido ao
jogo, mais me agradou a alcunha vinda da Maria Pulquéria, - Plínio
contava-me isto, completamente refeito do cansaço. O sono restabelecera-o e
eu refresquei-me um pouco, parecendo sair do estado mórbido em que já me
julgava encontrar.
- Vejo que és um romântico e com a tua grande capacidade de inteligência,
conseguias superar as deficiências do teu corpo. Admiro-te por essa
capacidade.
Ao ouvir estas palavras Plínio
só sorriu.
- E a escola Plínio?- perguntei-lhe de chofre.
O tempo da escola
- Foi o começou do meu calvário, da nossa tragédia, - disse-me
com uma voz tão magoada que me deu pena.
- Eu e a Pulquéria éramos os melhores e ao mesmo tempo os piores
alunos da classe, quando chegavam os exames não passávamos, - interrompi-o.
- Como é que isso podia, acontecer, Plínio? enervavam-se?
- Não, fazíamos a propósito, - disse-me com um sorriso triste nos
lábios.
- De propósito? - mas isso foi possível.
Com ar tranquilo foi
descrevendo a sua aventura, contou que o namorico com a Maria começara com
uns sorrisos e troca de olhares. Depois começaram a falar até que as
desconfianças, as más-línguas os descobriram.
Ela era das da aldeia das
Hortinhas o que dificultava a nossa relação. Decidimos, apesar de vigiados,
chumbar nos exames, assim estaríamos mais tempo ao pé um do outro.
- Claro, duplicavam o tempo e, no último ano de exame como foi? -
perguntei.
- Não houve exame. Tínhamos a certeza que após o exame nunca mais nos
veríamos. Na véspera do exame da quarta classe, já com quinze anos feitos,
devido ao atraso do carreiro que vinha buscar a Maria e trocando as voltas à
professora, consegui dar-lhe um escrito.
“Estarei à uma da manhã
junto à cabana das bestas, vê se podes lá estar. Toma cuidado com o cão para
que não ladre e procura não fazer barulho”,
- E ela foi?
- Sim tinha a certeza que não faltaria. Deu-se um imprevisto. Naquela
noite, ou porque tivéssemos tido, pela primeira vez relações sexuais ou
porque lhe apareceu a menstruação, ela sentiu dores horríveis e teve fortes
hemorragias
Levaram-na a um médico
- Imagino o sofrimento, o teu e o dela, Plínio.
- Foi grande e doloroso, com o psíquico a sobrepor-se ao físico, mas
durou pouco tempo. - ao dizer esta frase o rapaz baixou a cabeça e
começou a dar, novamente, mostras de cansaço.
- Ela morreu? - perguntei com ansiedade.
- Morreu ao sétimo dia de entrar para o Seminário e eu morri no dia do
seu funeral.
O funeral
- Decorria o mês Fevereiro, com fortes e frias chuvadas. Tive a
sensação que algo diferente e anormal se iria passar comigo. Parecia que o
mundo me caía em cima, toda a gente me apontava o dedo “foi ele” “foi ele que
a matou”.
Mas há sempre alguém, há sempre uma alma que nos compreende, que nos
estende a mão, um benfeitor que nos ajuda.
- E quem foi esse alguém, Plínio? como te ajudou? - perguntei-lhe
com o intuito de o fazer sair um pouco do seu estado melancólico.
- Foi o meu avô. Levou-me alimentos ao quarto, de onde só saí no dia do
funeral. Consolou-me dizendo “violaste o tempo do respeito, não por roubares ou por ser mal-educado
ou dizeres mal das pessoas, foi por amor, pelo amor de uma flor ainda em
botão, que no dia em desabrochou, morreu. Nunca serás condenado pelos homens
de boa vontade”.
- A vossa história é a mais linda história que ouvi contar, é
comovente, acredita que um dia a tentarei escrever, - Plínio levantou a
cabeça, o seu rosto alegrou-se um pouco, sorriu de mansinho. Um sorriso de
quem é compreendido, um sorriso de gratidão. E continuou.
- Fui cedo para o cemitério para assistir ao funeral. Meti-me dentro de
uma cova e tapei-me com um pano preto. Pareceu-me ter morrido por momentos,
ser condenado por um sem fim de mãos. Naquele mar ameaçador e tumultuoso de
acusações, emerge a mão salvadora, benfazeja, triunfante. “vem neto,
tenho um esconderijo melhor do esse, o meu capote, ele te abrigará e te
conduzirá ao caixão da tua amada” e assim sucedeu.
Quando abriram o caixão, precipitei-me e dei dois beijos na Maria
Pulquéria, ao mesmo tempo que o meu avô gritava “revive Maria, revive” e a multidão insensata, incapaz de nos
compreender, respondia “matam-se, matam-se”.
O capote do meu avô pairou pelos ares, abriu caminho por entre a
multidão, enfurecida e fugimos.
Não sei se corri se voei, e
sem querer, vi-me na ponte velha observando a água que corria impetuosa,
parecendo procurar alguém.
Num barulho aterrador que parecia a queda de um corpo nas profundezas
da terra, ouvi a voz da Maria Pulquéria dizer “salta Borboleta, salta”.
Levantei a vista e vi uma borboleta multicolor esvoaçar sobre a minha
cabeça, tocou-me na cara parecendo beijar-me. Ao tentar agarrá-la caí à água.
- E morreste, - perguntei.
- Morri, - respondeu e continuou.
- Hoje dia 18-09-2012, às 2 horas da manhã partilhando este
imaginário consigo, já duvido que esteja morto.
- Por favor Plínio, há pouco foi eu que estava confuso agora és tu
que te estás a confundir. Tu estás morto. Os cento e cinquenta anos que nos
separam não impediram esta conversa de comunhão e compreensão imaginativa,
mostrando ao mundo, que o amor é o mais belo sentimento de ligação humana,
mas começo a sentir cansado, por favor Plínio, deixa-me descansar um pouco,
deixa-me abrir os olhos, - pedi-lhe suplicando.
Senti um forte abraço, senti o
coração do Plínio a bater forte, senti o calor do seu corpo.
Ao contar a sua história Plínio
reviveu.
Quando abri os olhos, mas ainda
mal vendo e mal refeito das emoções, vi uma borboleta esvoaçar e sumir-se no
horizonte, como o fumo de sobro a arder.
Já com vista clareada vi, em
cima da minha secretária, o texto que vós estais a acabar de ler. A tragédia
da Maria Pulquéria.
Helder Salgado
18-09-2012
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