Do Parente, que não foi meu.
Embora
não me recorde de falar com o senhor Parente, tenho ainda presente a sua
figura, talvez por dois ditos que lhe ouvi, daqueles que gravávamos na memória,
quando pequenos, sem sabermos o que esses ditos queriam dizer ou talvez por
ele, empertigado e vaidoso, ir à frente da banda de música.
Um
fortuito acontecimento trouxe-me a felicidade de saber pormenores da vida desta
figura que marcou a sua época e com essa marca legou para as gerações futuras o
seu carácter, a sua honradez e acima de tudo a sua contestação, que aliada aos
desafios que a vida lhe proporcionou nos ofereceu o seu testemunho.
A história.
Há
dois, três meses presentearam-me com uma sebenta.
Os
primos, e neste momento não me recordo se foi a Chica, a São, a Zé ou o Quim
que ma deu, encontraram no galinheiro da avó este documento.
- Uma sebenta? - Interroguei-me e interrogaram-se os primos quando
a encontraram.
Corri
o olhar pelo rosto dos quatro primos e notei-lhe uma carga de ironia.
A
sebenta tinha um aspeto horrível.
O
papel pardo, semelhante ao que se usa agora com a crise, reciclado, já rasgado
e comido por esses pequenos animaizinhos que a minha mãe chamava de
“raposinhas” e que outras pessoas chamam rapas.
Fiquei
perplexo com a oferta e muito mais surpreso.
Como
e porquê o tio Parente escrevera aquela sebenta?
Porque
é que estes meninos a guardaram estando tão velha e sarnosa?
Mas
a maior interrogação que de mim se apoderou e que me fez fervilhar o cérebro,
foi descobrir a razão de ser eu a desvendar os mistérios encerrados naquela
velha e gasta sebenta.
A
sebenta trouxe-me à memória algumas recordações.
Outras
sebentas, novas e velhas, bem escritas, mal escritas por estudantes capazes e
por outros menos inteligentes, pobres e menos pobres ou talvez ricos, mas todas
de cor parda.
Ah, a minha sebenta? Porque não tenho
hoje comigo a minha sebenta? Porque não a guardei como o senhor Parente guardou
a dele?
Comecei a escrever cedo a minha sebenta
e interrompi a escrita. E continuando a interrogar-me. Será que ainda consigo acabar a minha
escrita, a minha outra sebenta?
As
saudades soltaram-se, em avalanche, num turbilhão de recordações que me avivou
a vontade de continuar a escrever.
Parecia
que o meu íntimo aceitava de mão beijada o desafio lançado por aqueles
insolentes meninos.
Sabiam
quanto eu apreciava as coisas antigas, as recordações do passado que não morre
na alma de quem o estima, de quem o lembra, de quem servindo-se dele caminha no
presente projetando o futuro, para que este não seja efémero mas sim duradoiro
e frutífero.
Quanto
estes primos se riram quando me viam observar a organização de um carreiro de
formigas, do vai vem das abelhas a entrar para a colmeia ou o nervosismo e a
velocidade de um cardume de peixes.
E
mais se riram quando eu tentava adivinhar o que se passava dentro do
formigueiro e da colmeia.
A
Chica, a mais atrevida chegou a dizer-me - “entre
lá para ver”-
sabendo bem que isso seria impossível.
Também
acreditavam na impossibilidade de leitura da sebenta.
Talvez,
penso eu, fosse esta a razão da sua entrega.
Eram
levados do Diabo estes primos.
A idade da sebenta
Fiz,
num ápice, contas.
Cem
ou mais anos tem a sebenta. Esta idade merece respeito como respeito e
admiração merecem os netos da tia Maria Godinho em não a destruir.
Talvez
por ser rapaz ou por ser mais rápido a ler o meu rosto, o Quim fez-me sair
daquela saudosa reflexão, dizendo:
- Leia - e estendeu-me a sebenta.
Era
impossível negar.
Acreditem
que senti as mãos a arder.
Sorri
para os quatro primos. Não sei, nem me disseram como interpretaram o meu
sorriso, mas sei que tamanha responsabilidade me fez sorrir, um sorriso de
medo, não um medo de fugir mas de receio de interpretar mal o conteúdo daquela
sebenta.
Tenham
paciência, ajudem-me.
Penso,
com a sinceridade que me é peculiar e a verdade das coisas e dos factos que o
conteúdo da sebenta é pertença de todos.
Por
isso peço, enternecidamente, caro leitor, a vossa especial atenção.
Não
a negue e, se o fizer estará a pôr em causa a nossa cultura, as nossas raízes,
e isso é negar-nos a nós próprios.
Suplico,
novamente, folheiem a sebenta comigo.
O abrir de sebenta
O
Parente teve a arte e o engenho de compilar os acontecimentos mais marcantes da
sua vida individual e colectiva.
Pela
sua coragem, pela superior visão que se alcança nas suas opiniões e nas
soluções por ele apontadas merece a minha admiração e, estou convicto, que
merecerá também a vossa, caríssimo leitor.
Com
mil cuidados, não fosse a capa desfazer-se tentei abrir a sebenta.
Impossível
foi a primeira palavra que aflui-o ao meu cérebro.
Impossível
manusear as folhas e difícil é a sua leitura.
Com
a lâmina fininha de uma faca, receoso e cuidadoso, fui passando as folhas.
Aproximei-me
da janela para ter mais luz e consegui ler a primeira.
Descrevendo
O
Parente era um homem de estatura baixa, não se podendo dizer que seria gordo,
sendo muitas vezes referenciado como atarracado.
Rosto
redondinho, de pouca barba, onde uns olhos de um castanho brilhante pareciam
sempre sorrir.
Nariz
aquilino a separar as faces demasiadamente brancas para quem como o Parente
apanhava o Sol escaldante dos Verões alentejanos. Sabia resguarda-se do astro
rei, e a ele se exponha nos frios e ventosos dias de Inverno. Via-se muitas
vezes à abrigada da esquina do lagar, sobretudo quando este moía e lançava
baforadas de ar quente para a rua.
Boca
pequena com lábios carnudos e queixo redondinho.
A
Chica do Rossio um dia, por brincadeira, chamou-lhe maneirinho.
O
Parente não se ofendeu e sorrindo, sem mostrar os dentes, fixou aquela
palavra.
Como
ele se orgulhava de ir a frente da música por ocasião da Festa dos Prazeres.
Vestia
o seu fato de cotim cinzento com listas azuis, dum azul celeste parecido com o
vestido da senhora da Boa Nova, a santa da sua devoção.
Devoção
única, pois não acreditava em mais santas, nem em santos, mas quando nestes
pensava detinha-se um pouco, pois vivia na freguesia cujo padroeiro era São
Pedro, não fosse o santo ofender-se e expulsá-lo da sua terra.
Terena
era o seu mundo.
A
casa onde vivia o seu palácio, apesar da exiguidade e de ter só um
compartimento.
A
um canto tinha a cama, no oposto, fazia lume e servia de cozinha.
Um
caixote de sabão, que na altura abundava, provenientes da fábrica São Paulo, em Vila Viçosa , servia-lhe
de mesa. Um banco de azinho, que ele arranjara e divertidamente chamava de
“burro” fazia de cadeira.
O
lavrador cedera-lhe a casa com a pequena obrigação de olhar pelo olival para
que não roubassem a azeitona, obrigação que ele cumpria muito mal.
- Um milagre - dizia muitas vezes o
Parente, pois desde que saíra da casa
dos pais, aos catorze anos, não mais sentira o conforto de uma cama digna do
nome, dormindo, algumas vezes, de Inverno nas almenaras e de Verão nas eiras.
Era
o que estava escrito na primeira página da sebenta.
Difícil
foi lê-la vejamos as outras.
As páginas seguintes
Foi
muito difícil passar a segunda página, pegada que estava à seguinte.
Depois
de ter sido posta ao sol, as páginas da sebenta enrugaram-se um pouco e
permitiram uma melhor abertura e por encanto uma mais percebível leitura, onde
no cabeçalho da página se podia ler, sem nenhuma dificuldade, Os meus pais.
Um
meu mau raciocínio se desfez quando do decorrer da leitura ia alcançando que o
Parente e os pais estiveram de acordo com a saída deste da casa paterna.
Raciocínio que se transformou em admiração pelo entendimento dos três.
A
enorme dificuldade que o Parente encontrou na aprendizagem das letras levou-o a
contratar-se como ajuda de vaqueiro na casa Morais.
E
como ele admirava aquela parelha de cavalos, que diziam de raça argentina,
baixos e fortes de patas curtas e cascos largos, cujas ferraduras, na oficina
de ferrador do mestre Salgado, eram
feitas de encomenda.
Depois
de sair da escola, aos catorze anos, com a terceira classe, começou a
governar-se sozinho.
A
princípio sentiu algumas dificuldades, em parte superadas, pela cedência da
casa, que se situava à entrada de Terena, à direita, vindo do Alandroal, no
lugar chamado, vinhas, perto das alcaçarias.
Ao
invés das letras era um bom conversador e sabia com uma notável habilidade “levar a água ao seu moinho”.
Assim
e com autorização do seu moral aparecia todas as tardes de domingo em Terena,
nunca esquecendo de visitar a casa dos pais.
O
jogo das cartas e do chito, jogos muito em uso na época e praticados na taberna
do Quintino, não o atraiam.
Observava,
no café do senhor Torcato o jogo da
laranjinha, mas por mais que quisesse aprender não o entendia. O que realmente
gostava era do futebol. Achava este jogo próprio para homens e se podia não
faltava a nenhuma partida, além disso, na assistência, podia ver as raparigas,
que no campo e atrás das vacas raramente via, excetuando quando alguma,
acompanhada da mãe, ia lavar roupa à ribeira.
O
Lucefécit era para ele um bom ponto de encontro.
Lá encontrava muitos rapazes e alguns amigos. Por eles sabia as novidades da Vila, que depois comentava com o seu moral.
Lá encontrava muitos rapazes e alguns amigos. Por eles sabia as novidades da Vila, que depois comentava com o seu moral.
Queria,
com isto, saber como se comportaria se qualquer caso se tivesse passado com
ele.
- Estás a aprender a ser homem - disse-lhe
algumas vezes o seu moral das vacas, o tio Zé da Horta.
Com
efeito o Parente assimilava e refletia o que ele julgava mais importante.
Mais
outra pagina passada e temo-lo já com dezoito anos, um adolescente garboso a
tentar afirmar-se no meio.
Ambiente
duro, de homens rijos, opiniosos e senhores de uma só palavra.
O
Parente começou a sonhar com outras paragens. Pensou sair do Concelho. Arranjar
contrato para as pedreiras, mas a morte do filho da Mizè, espanhola refugiada
da guerra de Espanha, em Terena, fê-lo desistir da ideia.
- Há mais marés que marinheiros, esperarei por
uma oportunidade - conformou-se.
A Festa dos Prazeres
Dizia
em tom de brincadeira, que não ia à Festa, a festa é que vinha ter com ele. O
serviço de ajuda de guardador de gado vacum exercia-o na herdade da Vila Velha,
onde se situa o Santuário de Nossa Senhora da Boa Nova.
Como
ele se extasiava a olhar para a Santa. Tinha uma atração pela imagem que ele
não conseguia explicar.
Anos,
atrás de anos, aumentava esta atração. Embora não conseguisse rezar uma oração
até ao fim, balbuciava o que delas se lembrava.
Sentia-se
feliz e protegido pela Santa.
Na
Segunda Feira de Prazeres, depois de acantonar o gado, visitando o lugar dos
forasteiros que procuravam a melhor azinheira para almoçarem à
sua
sombra, petiscava aqui e ali, tornando ano após ano, uma figura querida da
Festa.
À
noite e à noite não tinha obrigações, assistia, ao baile, do lado de fora do
jardim, como muita gente o fazia.
Delirava
ouvir as orquestras.
Um
ano resolveu entrar e perder o amor ao custo do bilhete da entrada para o
baile.
- Vinte e dois escudos e cinquenta centavos,
que se lixe o dinheiro - pensou, esperando ver lá a Maria do Rossio.
Assim
não sucedeu. Não se importou muito em não a ver no baile.
- Ficará para o ano - conformou-se e
apreciou as bonitas melodias entoadas pela então famosíssima orquestra Bass, do
Alandroal que alternava com a orquestra Monte Carlo, de Badajoz.
Cartas de amor quem as não tem/Cartas de
amor são andorinhas que num vaivém/ cartas de amor .... cantava o
Manolito Salomé e o Parente logo pensou em escrever uma carta à Maria do
Rossio.
-
Mas quem me levará a carta? -
interrogou-se.
Dormiu
na sua casa, nas vinhas e, levantando cedo, ao som do ribombar dos morteiros
foi tratar do gado.
No
ano seguinte não entrou para o recinto do baile, apesar dos bilhetes serem ao
mesmo preço, pensando que a Maria não estaria no baile.
Quando
a encontrou no recinto da Festa, indo ela para a missa de terça feira de
Prazeres, num gesto de coragem dirigiu-lhe a palavra.
- Tivesses ido ontem ao baile, tinhas muito
tempo de falar comigo - o Parente arrependeu-se de ter ficado com os vinte
e dois escudos e cinquenta centavos no bolso, por não ter ido ao baile.
Viu-a
entrar na Igreja e entrou também. Viu-a rezar e tentou também rezar.
Começou
um Pai Nosso mas não passou de metade. Não desistindo começou a rezar uma
ave-maria, pior ainda, nem a metade chegou.
Desistiu
de rezar.
Olhou
para a Santa e não viu recriminação. Olhou para a Maria e viu-a compenetrada em
rezar.
Olhou
de envergonhado para o chão. Vi-o sujo, muito sujo e indignou-se.
Comparou
o chão da sua casa, da sua casinha, ao chão da Igreja. Olhou para o teto e
viu-o com sinais de infiltrações, que corroíam as figuras, que tão bonitas e
importantes lhe pareceram.
A
sua indignação aumentou.
Procurou
com o olhar um festeiro na missa e não viu nenhum. Também não viu a ermitoa.
Olhou
para a Santa com um ar interrogativo, procurando encontrar nela a solução ou
pelo menos a explicação para aquela falta de asseio e de degradação do teto da
Igreja.
Fixou-a
bem nos olhos e viu-a chorar lágrimas de lamentações, de abandono e tristeza,
por só se lembrarem dela na Festa.
Aí
sim é uma rainha, cheia de bons cordões de ouro, melhores medalhas, bom vestido
e manto, com soberba coroa também de ouro.
O
Parente saiu do Santuário tonto como um bêbado sai da taberna. Procurou as suas
vacas e sentou-se numa pedra, com a cara coberta pelas mãos, parecendo meditar,
quando sentiu o bafo quente de uma das vacas.
A
pombinha adivinhado o pensamento do ajuda veio deitar-se junto a ele, parecendo
dizer-lhe:
- Vai, ajuda a Santa, que Deus te
recompensará.
O
Parente, com aquela atitude da vaca sentiu-se menino, menino Jesus.
Recordou
o presépio e sentiu-se deitado na manjedoura, nu mas sem frio, viu Maria, a sua
mãe e leu-lhe no rosto a fé dos humildes, na esperança do amanhã e na singeleza
e do belo extraído das coisas simples.
Ao
acordar daquele estado semi-hipnótico, sentiu uma estranha e nunca antes
sentida força interior. Sentiu-se capaz de remediar todo aquele mal, de ir em
auxílio daquela imagem, que ele começara a adorar.
Pela
leitura destas páginas deduzi que o Parente acabara de sair da adolescência e,
principiava a conhecer os problemas que através dos tempos iam afligindo a
sociedade de Terena.
Folheando
Continuamos
a ler mais páginas da sebenta e observamos o Parente agora a trabalhar na horta
dos Vicentes.
Esta
horta situava-se na pequena herdade do mesmo nome. A herdade estava coberta de
um azinheiral que alimentava, durante o Inverno, um rebanho de cabras e alguns
porcos. A terra era magra e xistosa e só em anos chuvosos é que dava alguma
seara de jeito.
Ao
contrário, o solo da horta era forte e com o estrume das cabras e dos porcos
como fertilizante, aquela porção de terra tornara-se muito produtiva, onde a
habilidade do Parente, se fazia sentir nos canteiros e nos quarteirões,
parecendo
pinturas e obras de arte.
A
hortaliça era saborosa e sempre tenra, tornara-se famosa e não chegava para as
encomendas, onde, no atendimento da clientela, sobressaia o bom acolhimento do
hortelão.
A
água, na nora, nunca faltava e tirada com o esforço de um burro, corria
abundante no rego, onde o Parente se esforçava para não a deixar sair fora.
Na
Primavera a hortaliça abundava e, embora não a vende-se barato, dava sempre
mais uma couve, uma alface ou mais um punhado de cenouras, de favas ou ervilhas
e até espinafres.
A
clientela aumentava dia a dia, mas o verdadeiro corrupio era no Verão no tempo
dos figos.
Nas
extremas da Horta alternavam as oliveiras e as figueiras pelo que a fartura de
figos era tanta que estes eram oferecidos.
À
medida que os anos passavam a simpatia pelo senhor Parente crescia entre a
larga maioria da população de Vila.
Numa
tarde fresca de Verão, a dona da herdade e da horta, a dona Deolinda leu com
alguma surpresa, numa tábua de madeira, a seguinte inscrição:
- Destes ninguém colhe - ordem do Parente.
Achou
graça e interrogando-se, dirigiu-se ao hortelão e perguntou o porquê daquela
ordem.
- Fazem umas belíssimas passas senhora,
experimentei o ano passado e este ano quero fazer muitas para todos - disse o Parente com uma convicção que deixou a Dona
Deolinda surpresa e, correndo para a casa da horta, foi buscar meia dúzia de
passas que ainda lhe restavam e guardara dentro do um frasco que para o efeito,
tinha pedido na loja da Dona Cesaltina.
Se
entre a população da Vila de Terena, o Parente estava a tornar-se uma das
pessoas mais simpáticas, com a questão das passas ganhara, perante a patroa
Deolinda, toda a sua simpatia e confiança.
Já homem
Mais
umas páginas passadas, com o mesmo cuidado de início, vemos o Parente, a ler um
cartaz que colado na parede do casão do velho Espada anunciava uma corrida de touros, na festa dos Capuchos, em vila Viçosa.
Curiosamente,
como ele escrevera naquela página da sebenta, o que mais o atraía naquele
cartaz era o cavalo, onde o grande mestre do toureio a cavalo, Simão da Veiga,
estava montado.
Observou
o cavalo, as narinas, as orelhas, as patas, enfim todo o corpo e debruçou a sua
atenção na cabeça. Achou-o bonito e comparou-o aos cavalos da casa Morais.
Pareceu-lhe ser este mais fogoso, mais leve, logo mais rápido e adaptável a
estas corridas.
A
ideia de ir assistir à tourada começou a tomar vulto, mas o preço de entrada,
duzentos escudos fazia-o recuar e refletir.
- Duzentos escudos, mais de um mês de soldada
e ainda o preço do bilhete da camioneta da carreira, da setubalense do João
Cândido Belo - é muito dinheiro, pensava o Parente.
À
medida que o tempo passava a ideia tornava-se cada vez mais forte e parecia
vencer o hortelão.
No
final de um capítulo das páginas da sebenta, que agora se deixam ler melhor, o
Parente descreve a sua ida à tourada.
A família Gião
A
dona Deolinda enviuvara cedo e do casamento ficaram sete filhas e um filho,
sendo este um pouco atrasado na fala.
Era
certo vê-las na festa dos Prazeres e nalgumas feiras de Reguengos de Monsaraz
ou de vila Viçosa.
Algumas
ajudavam na festa e outras não, pelo que as opiniões entre elas dividiam-se. O
Parente, sempre curioso em relação à feitura da Festa ia ano após ano tomando
as suas notas, às quais acrescentava soluções.
O
nosso homem ia ganhando confiança entre as irmãs, que o estimavam e lhe
contavam o que se passava, não só em relação à festa dos Prazeres, mas também
aos acontecimentos de maior relevo da Vila.
A
viúva Deolinda resolvera ir à festa dos Capuchos e à corrida para ver alternar
o mestre João Núncio com o Simão da Veiga, grandes rivais dessa época.
A
lotação do churrião esgotara-se com a família, sendo necessário levar mais uma
pessoa para guiar a parelha de machos.
O
João sugere o Parente, este aceitou com alegria.
- Não faz mal, patroa, irei sentado num saco
com palha, não preciso de banco - respondeu o hortelão pensando misturar
aveia e favas na palha, para que as muares levassem mais tempo a comer e assim
ele iria mais descansado à tourada.
O
seu entusiasmo esmorecia quando pensava no preço do bilhete e começou a magicar
na forma de entrar à borla.
O Vapor
Não
era um barco e muito menos um transatlântico, daqueles ingleses que devido ao
carvão de pedra deitavam, no céu, enormes nuvens de fumo, mas um conhecido “brinholeiro” do Alandroal
Nunca
faltava a nenhuma feira, nem nenhum ano faltou à festa dos Prazeres, embora
aqui fosse mais por devoção do que pelo negócio.
Espreitou
o negócio dos gelados e obteve autorização de venda nas touradas de vila
Viçosa.
O
Parente sabia-o, pois falava muito com o homem das farturas, quando da Festa.
- É só convencer o Vapor - pensava o
Parente - e tenho entrada de graça.
Assim
sucedeu.
Vestido
de modo igual ao Vapor, bata branca e boné da mesma cor, vimos os dois homens
na praça de touros a vender gelados.
Embora,
quando se aproximava do camarote onde estava a família Gião, o Parente
atarracava o boné até às orelhas, não deixou de ser reconhecido pelo João que
gritou é .... é ... mas a um grito - Cala-te
- da mãe, gago que era, não acabou a frase.
Quando
dos agradecimentos, um ramo de bonitas flores passou por cima da cabeça do
Parente, este reconhecendo as rosas ficou furioso.
Eram
flores do canteiro que ele guardara, para quando a Maria do Rossio fosse à
horta.
Mais
do que furioso ficou quando, de perto, observara os jorros de sangue saídos da
ferida do touro e as picadelas das esporas na barriga do cavalo. Lembrou-se das
vacas, da pombinha que tanto o acarinhara quando magoado, no seu íntimo, saíra
da Igreja.
Perdera
todo o entusiasmo que antes do espetáculo criara, entregou a farda e os gelados
ao Vapor e saiu do recinto, conformado apenas por não ter gasto os duzentos
escudos no bilhete.
As
meninas, sobretudo a Ausenda, vinham contentíssima da tourada, contrastando com
o Parente que apanhara a primeira desilusão da sua vida.
Passada
a página da tourada, surge o nosso homem já com vinte e seis anos.
Metade da sebenta
A
São e a Zé mantendo aquele sorriso irónico quando da entrega da sebenta
perguntaram com ia a leitura.
- Com alguma dificuldade, mas vai indo -
respondi calmamente.
Deram
meia volta e notei que o sorriso de ambas mudara.
A
sensação que tive na altura foi que os primos julgavam que não teria coragem de
ler a sebenta.
As
páginas do meio, muito embora se lessem melhor, apresentavam um maior grau de
dificuldades.
A
Maria do Rossio estivera quatro ou cinco vezes na horta sempre acompanhada e
ele, além de um olhar mais quente, não se atreveu a dirigir-lhe a palavra.
Algo
de estranho o impedia.
A
sua jovem patroa acabara por casar com o mestre Simão da Veiga e ele, o
Parente, além dos trabalhos da horta, era obrigado a auxiliar, na cura e limpeza
dos cavalos, o éguariço senhor António.
Outras
irmãs, a seu tempo, também iam contraindo matrimónio.
Numa
das melhores praças de Portugal, nas Caldas da Rainha, mestre Simão depois de
uma extraordinária faena e ainda em praça, sentiu-se mal e acaba por sucumbir.
A sua morte foi sentida por todo o mundo aficionado.
Quando
o Parente ia à sua casa, nas vinhas,
sentia, perante a fotografia da senhora da Boa Nova, um alívio de alma que lhe
dava novas forças.
Um
dia perguntou à santa como proceder perante a Maria do Rossio, uma vez que ela,
tal como ele não conhecera nenhuma mulher, não tinha, até então, conhecido
homem nenhum.
Fixou
os olhos da Santa, mas não deduziu nenhuma resposta.
- Tenho que agir sozinho - concluiu.
Procurou
a oportunidade e pede-lhe namoro.
- Não - disse ela com um tom que não
admitia dúvidas.
- Mas tu um dia disseste - que eras maneirinho - atalhou a Maria
sem lhe deixar acabar a frase.
Tudo
isto suou aos ouvidos do Parente como uma sentença de morte. Condenava-se por
não ter sabido interpretar o silêncio da santa e também se condenava porque
deveria ter tomado aquela decisão mais cedo e, talvez assim tivessem surgido
outras raparigas.
Entristeceu
e sentiu vontade de se despedir, vontade mais tarde acrescida pela morte da
dona Deolinda
Tentativa de sedução
Uma
das filhas da velha patroa, já com alguma idade e com um defeito numa perna,
tinha um certo fraco pelo Parente.
Agora,
com a liberdade alcançada com a morte da mãe, e com ameaça de despedimento por
parte do hortelão, apoderou-se dela o desejo de seduzi-lo.
Ao
ver casar as irmãs e com medo de ficar sozinha, começa a arquitetar a maneira
de se aproximar do Parente, sem ser vista.
Um
dia quente de Verão, à hora da sesta, dirigiu-se à horta, disposta a dar
cumprimento aquela sedução.
Cobriu
o corpo apenas com um robe, disposta a sentir pela primeira vez o prazer
carnal.
Pelo
defeito da perna, de que ela não se considerava culpada, nem culpa tinha, era
ostracizada pelos rapazes e só pelo grande medo que a mãe lhe imponha é que não
oferecera o corpo.
Quando
mais nova ainda manteve alguma ilusão, levada pelas mulheres “casamenteiras” que então proliferavam,
na mira de boas recompensas, “milhaduras”, mas logo que à fala chegasse com os
rapazes tudo se esfumava.
“
Hoje ou nunca pensou a rapariga disposta a oferecer a sua virgindade”
O
Parente, por se levantar sempre cedo, dormia a sesta, na esteira de junça e
buinho que ele próprio fizera.
A
porta só era fechada de noite e naquela tarde ficou completamente escancarada.
O
hortelão dormia a sesta de tronco nu, vestido apenas com umas cuecas, de
pano-cru, de portinhola apenas presa por um botão, feitas de modo artesanal.
A
rapariga entrou na casa da horta, já com o robe desabotoado, sem que o hortelão
desse por isso.
Nunca
tão perto tinha visto o sexo de um homem.
Mirou
e remirou, com uma enorme vontade de lhe mexer.
Ao
fazê-lo, este, de assustado volta-se de repente pega na navalha, que sempre
guardara debaixo da enxerga e tenta defender-se.
A
rapariga foge amedrontada em corrida desnorteada a caminho do monte.
Pode
ler-se na quadragésima primeira página, que os cães e gatos fugiram dela.
O abandono da horta dos Vicentes.
O
Parente sentiu-se vexado e enrolou a trouxa, (como ele escreveu) e, foi-se
embora.
No
alto do cabeço de onde se avista ainda o monte, antes da horta do Azevedo
parou, voltou-se para trás e sentou-se numa grande pedra.
Refletiu
- Ah se ela me tem dito, se tem falado,
isto não sucederia - nada se impõem e logo isto - e eu que tanto o desejava.
Pensou
ainda em voltar para trás de arrependido que estava, mas receou ser visto e,
ela, certamente, de medrosa que ficara não repetiria o ato, desistiu.
Quando
chegou ao ribeiro dos coitos, ainda com água, refrescou-se e descansou um
pouco.
Queria
chegar a Terena com um ar leve, para não dar aso a perguntas e se lhas fizessem
poder dizer que fora ele que se despedira.
Ela,
certamente, nada diria, pensava o Parente.
Ao
passar junto ao café do Torcato, estava o doutor Galhardas e o mestre Manuel
sapateiro. Este convida o Parente para beber um copo.
- Não, Manel agora tenho muito tempo -
disse o nosso protagonista sem parar, a caminho da sua casa nas vinhas.
Não
restavam dúvidas, àqueles dois homens, o Parente despedira-se ou fora
despedido, embora ficassem sépticos por ser dia de semana e à hora da sesta.
Quando
chegou a casa entristeceu, por pensar que se precipitara, embora não se
considerasse culpado.
Olhou
para a santa e fixou nos olhos parecendo obter dela o que o futuro lhe
reservava. Viu-lhe serenidade no olhar e um leve sorriso nos lábios.
Conformou-se.
Nessa
noite não consegue adormecer. A imagem da mulher nua aparece-lhe
constantemente.
Acorda
e levanta-se cedo. Encara a santa que parece recriminá-lo.
A
interrogação do despedimento espalhou-se depressa. Mas em nada beliscou a
grande popularidade do Parente.
Oferta de trabalho
O
Paiva era proprietário do monte Dom João, cuja herdade se dizia ser cortada em
courelas e oferecidas à população da Vila e tinha a maior horta de Terena e um
telheiro.
- Não - recusou o Parente à oferta de
trabalho para a horta.
Recusa
a pensar na Maria do Rossio e na ação da sua patroa dos Vicentes, duas feridas
não saradas no peito de nosso escritor.
- Se fosse para o telheiro - disse um
pouco a medo o Parente.
- Daqui por um mês, sabes que é um trabalho de
Verão - respondeu o Paiva.
O
Parente estendendo a mão ao Paiva disse - Está
combinado.
Este
gesto impressionou o futuro patrão do nosso homem. Nunca nenhum criado lhe
manifestou semelhante gesto.
Outra desilusão
Neste
intervalo de tempo e até ser admitido no telheiro, o Parente vai confirmando o
que sabia acerca da festa da Boa Nova e da gerência do Santuário.
Os
festeiros, há algum tempo contestados, pela não clarividência das contas e pela
sua não apresentação pública, não admitem novos membros.
O
velho padre Monteiro, capelão da paróquia é incapaz de modificar o estado e a
estrutura daquele grupo, e conversa a este respeito com o doutor Galhardas, que
começa, também ele, a contestar os festeiros.
Entretanto,
o tio Tarzana, sacristão do padre morre de velhice.
-
Parente, sempre te notei um interesse
pela Festa, queres entrar para sacristão? - pergunta o doutor.
- Com todo o gosto - responde o nosso
homem com um entusiasmo surpreendente.
E
foi assim que o Parente, a pedido do doutor Galhardas, entra para sacristão.
Pensava
ele que indo para aquele ofício que iria fazer parte da Festa e conhecer os
seus meandros por dentro.
Puro
engano.
E
logo, nos primeiros dias da aprendizagem, notou que nem o padre tinha voz ativa
na gerência da Festa.
Quando,
em casa olhava para a fotografia da santa, nada almejava.
Resolveu
ir ao Santuário.
Ajoelhou
e rezou.
Surpreendeu-se
por ter conseguido rezar a Ave-maria.
Olhou
para a Santa e viu-a triste. Pareceu ver no rosto da Santa os mesmos sulcos,
provocados pelas infiltrações, que atravessavam a pintura da nave principal do
apocalipse segundo São João.
Saiu
do Santuário tal com da primeira vez, triste.
O tempo passa e nada muda
Nada
mudara durante todo o tempo que estivera nos Vicentes.
Uma
enorme mágoa se apodera dele, mágoa de tristeza que ele começava a pressentir
que se transformaria em revolta.
Foi
o capítulo mais difícil de interpretar, acreditem. Não pelas palavras escritas,
mas pela interpretação das mesmas.
Era
latente a revolta do antigo hortelão.
Pensou
em abandonar o cargo, à semelhança com a saída da horta, mas aqui era diferente
a sua popularidade seria abalada e a confiança que nele depositavam diminuiria,
além disso o padre Monteiro, apesar das suas bebedeiras, não o merecia.
E
também ele, Parente, começara a enveredar pelo caminho da vinhaça.
O
Verão aproxima-se e com ele a preocupação de cumpri a palavra dada ao Paiva,
começar a safra no telheiro.
As meninas e o Parente
Não,
não façam maus raciocínios que o Parente foi sempre respeitador, as meninas são
outras, por vezes velhas e mais duras que uma cabra serrana, gulosas e atrevidas.
O
velho Xastre, também opositor aos festeiros, com o intuito de saber alguma
coisa da festa, convida o Parente para tocar umas ovelhas para a feira de Maio,
em Vila Viçosa
e fala-lhe em levá-lo às “meninas”.
A
imagem da mulher nua, pairando no cérebro do nosso homem, aviva-se com esta
oportunidade,
Vendidas
as ovelhas e lá está ele, sentado, à espera de vez e da “menina”.
- Como será ela, a que me sai, será parecida
com a outra - interrogava-se e lamentava-se pela falta de sorte, neste
caso, na horta dos Vicentes.
- Anda – foi o que lhe disse a “menina” que mais parecia ser avó dele,
sem lhe dar tempo para ele dizer uma palavra sequer.
Pude
ler, em maiúsculas, o primeiro dito que ele escreveu “até se me agarrotaram as
unhas dos pés” referindo ao seu primeiro ato sexual naquela casa de
prostituição, escrevendo logo a seguir, em minúsculas, “ fui às meninas mas fiquei teso, quando voltei a abrir a carteira”.
O trabalho no telheiro
Depois
de uns dias de aprendizagem, onde surpreende o mestre Pé Curto, pela sua rápida
assimilação, vemo-lo a subdividir-se, apenas quando havia funerais entre a
Igreja e o telheiro, tolerado pelo patrão e o seu mestre.
Tudo
o que lhe passava pelas mãos lhe saía perfeito, o que não parecia alegrar o
Parente.
Parecia
arrastar-se e sem vontade ia exercendo a função de sacristão, embora ainda
sentisse alguma fé e continuasse a consultar a Santa, na fotografia, mas já só em sua casa.
A
sua popularidade baixou, com a notícia da ida às “meninas” e com o crescente ceticismo da despedida dos Vicentes.
Estes
acontecimentos começaram a pôr em causa a sua continuidade com sacristão.
O
nosso protagonista escreveu a este respeito - eu e o padre remávamos contra a maré, até as paredes pareciam ter
ouvidos, o medo estava lá instalado.
Decidi
aguentar até que o padre vivesse e o que não levou muito tempo.
A paróquia sem padre
Vários
padres, uns vindos do Alandroal, de Santiago e vila Viçosa serviam a paróquia
de Terena.
Embora,
tal como se pode alcançar da sebenta, o seu escritor nunca deixou de ir à
festa, nunca deixou de ir à frente da banda fosse ela de Estremoz, do
Alandroal, de Vila Viçosa ou Reguengos ou até do Redondo.
Continuou
atento à festa, àquilo que se ouvia dizer, pois daquele governo de pouca gente,
pouco ou nada transpirava.
O
nosso protagonista continuava agora com mais frequência a frequentar a taberna
do Quintino e o café do Torcato.
Um
dia, depois de ouvir, na sociedade, a atuação do poeta popular António Aleixo e
com uns copos bebidos a mais, implicou versando, deste modo, com o doutor
Galhardas.
Nem sempre o que sabe mais
É o que tem mais valor
Aleixo entre os demais
A rimar é um doutor
O doutor, também já bebido em
parceria com o mestre Manuel, julgou-se atingido e num ápice agarra o Parente
pondo-o em cima de uma mesa.
Dá
um passo para trás e estica o braço direito, quando o sapateiro o manieta,
cruzando os seus braços sobre os do doutor.
O
Parente não perde tempo e fugiu a sete pés.
Foi
uma cena falada durante muito tempo em Terena. O doutor com o sapateiro às costa a
tentar desamarrar os braços.
Todos
se riram e quando alguém foi ver do Parente já ele ia ao pé do posto dos
correios, onde a menina Toninha exercia o seu trabalho, entre a moagem do Nunes
e o lagar do Joaquim Martins.
O
mestre Sapateiro repetiu o verso e o doutor reconhecendo o erro, desculpou-se
com o bom vinho do Chico Zé, de vila Viçosa, vendido pelo Torcato.
Novas
gargalhadas.
O
segundo dito do Parente “Ah cavalinho
duma cana” tem, nesta corrida, a sua origem.
Escreveu
o Parente - até hoje ainda não entrei no
café do Torcato.
Finalmente novo padre em Terena.
Foi
uma bênção quando este novo padre chegou à Vila.
Desejado por toda a população
depressa lhe granjeou a simpatia.
Os festeiros não foram
exceção, julgando fazer deste novo padre o que faziam com o padre Monteiro.
O
nosso homem, o doutor Galhardas o mestre Manuel estão expectantes, quanto a uma
eventual mudança da Festa dos Prazeres e em tudo o que diz respeito ao
Santuário.
Começa,
quanto à Festa, a primeira desilusão dos festeiros, quando o padre Albano,
antigo capelão do exército, reúne a população no café do Peças, antiga taberna
do Zé Major e convida, em particular, os nossos três homens.
Na
quadragésima página da sebenta escreve o nosso herói, em discurso direto:
- Foi o momento mais difícil da minha vida.
Ao entrar no café do Peças dei com o
doutor Galhardas.
Tudo estava preparado para o começo da
sessão. Já tinha reconhecido o meu erro e arrependido. Apesar de não conhecer o
padre pedi-lhe licença para pedir desculpa ao doutor. Caímos nos braços um do
outro e tudo se esqueceu. Jamais me esquecerei da cara do padre, ao ver aquela
cena.
Desta
reunião, que se pode chamar democrática, nasce a nova comissão de festas,
composta por um sapateiro, um lavrador e um empregado de comércio.
Escreve
a seguir o nosso protagonista - eles, os
festeiros, pensavam por estarmos a menos de um mês da data tradicional da
festa, que esta não se realizaria. Enganaram-se. O Povo finalmente acordara.
Foi um êxito.
Novas caras apareceram na bacia e nas
quermesses, uma renovação total.
E
continuou:
- Levei a sebenta e li os apontamentos
referentes à Festa. O Manuel sapateiro e o doutor, quando me engasgava auxiliavam-me.
O padre impressionou-se connosco e com toda a população presente.
Envergonhei-me quando ele disse que eu
era um homem de fé.
Ora, eu mal sabia as orações apesar de
ter sido sacristão por acaso e por um mês.
Refleti e interroguei-me. Será que ter
fé é acreditar que podemos modificar o que está mal? Lutar contra o opressor? É
sermos honestos, solidários e humildes? Se for assim eu acredito, tenho fé.
Acabada
a sessão, a Rua das Casas Novas foi palco de prolongada conversa entre os três
amigos.
E
conta alguns pormenores.
Contou-me, mais tarde, o Miúdo, o novo
tesoureiro que a um saldo de 2.000$00 das contas anteriores, se juntaram 31.000$00.
Finalmente vi afixadas, atempadamente,
na porta da igreja Matriz, as contas da Festa dos Prazeres - e completou -
ainda assisti, durante alguns anos, a esta afixação.
O Parente adoece
O
nosso protagonista começa a sentir-se doente. Sente que respira mal e deixa de
trabalhar pensando ser do pó, aquela dificuldade.
Descreve
pela última vez, na quinquagésima segunda página da sebenta a sua última ida à
festa.
- Vesti o fato e parti para a Vila.
Coloquei-me, como sempre nos anos anteriores, à frente da banda, que já não
acompanhei. Fiquei para trás e quando ia frente à fonte as forças faltaram-me.
Tentei beber água. Mas não consegui subir os degraus. Sentei-me e ali fiquei.
A banda continuava tocando. De repente
ouvi uma voz - Parente, o que tens?
- tentei responder mas não consegui. Era a Maria do Rossio que passava e ia
para a missa. Levou-me a casa e deitou-me. A banda tocava o hino de nossa
senhora. Olhei para a santa mas não a vi. Senti que a Maria saiu apressada.
Adormeci.
Passado algum tempo, acordando, ouço o
doutor Galhardas dizer à Maria.
- O
Parente não pode ficar aqui, sozinho.
- Dão-me um remédio e saem.
Ouvi a Maria soluçar a tornei a
adormecer. Acordei com a estrondosa e demasiada salva de foguetes a exaltar a
entrada de nossa Senhora para a Igreja Matriz.
Era domingo de Prazeres.
Nessa noite não dormi. Foram horas de
reflexão. O doutor a quem eu tinha ofendido viera a minha casa. A Maria do
Rossio que antes me rejeitara auxiliava-me agora.
E eu deitado, sem ânimo e sem força.
Que será feito de mim? sem ninguém, sem
família?
Acabara de adormecer quando entra a
Maria.
- Parente vais sair daqui. Arranjei-te uma
casa, um galinheiro, é alto e tem telhado com forro de madeira, porta com
postigo, e um agulheiro que serve para arejar e entrar a luz, agora está
tapado.
Está
tudo limpinho e caiado.
As três Marias
A Maria
do Rossio contara à tia Maria do Quintino o estado de saúde do Parente e esta,
por sua vez, contara à vizinha Maria Godinho. Assim aparece o galinheiro como a
nova casa do Parente.
As
filhas das duas últimas Marias, sob a orientação da primeira Maria, renunciando
ir ao baile de domingo, arranjaram e assearam o galinheiro.
Quando
o Parente está a entrar para a sua nova casa, está a sair a procissão levando
nossa Senhora para o Santuário.
Era
segunda-feira de Prazeres.
O
Parente ouve o hino, com lágrimas nos olhos.
Sentiu
uma estranha sensação invadir-lhe o cérebro que lhe pareceu ser o prenúncio de
ouvir pela última vez o hino de Nossa Senhora, a santa da sua
única
devoção, que agora no estado débil e de carência parecia abandoná-lo.
Um
morteiro ecoou na sua casa, como se um tiro de trotil despoleta-se nas profundezas duma das
pedreiras de Borba.
O
Parente vergou de alto abaixo, sentiu o coração despedaçar-se e levou a mão ao
peito.
Teria
caído não fora a Maria do Rossio agarrá-lo, abraçando-o.
Sentiu
o calor humano acrescido de carinho da Maria, que poderia ter sido sua e que
não fora por causa daqueles, cujo o egoísmo lhe inverte o destino, provocando a
desgraça nos outros.
Sentiu
uma fé diferente do que até então sentira, que se traduzia numa aproximação
humana, carinhosa solidária.
O
brilho dos olhos do Parente encontrou no olhar Maria estima e compreensão.
O Parente sobrevive
A
taberna do Quintino, nessa altura, era a mais afreguesada das tabernas da Vila
e era fácil à tia Maria subtrair um caldinho, um peixe, um bocado de assadura
ou até um passarinho frito ou assado.
Do
quintal da viúva Godinho colhia-se uma alface, uma couve, uns temperos. Fruta
quase sempre havia, figos e laranjas não faltavam.
Não
era difícil nem muito dispendioso tratar do Parente.
A
Maria do Rossio encarregava-se de lhe levar a comida e assear a casa.
O
Parente sentindo todo este carinho e conforto começa a melhorar e, pouco a
pouco vai recuperando a fala.
Entretanto
o padre Albano deixa Terena, após seis anos de estadia.
O
nosso homem sentindo mais força começa a dar umas passadas, primeiro no
quintal, depois na azinhaga, mas onde ele nunca mais entrou foi nas tabernas.
Esta
nova e boa disposição leva-o a interrogar-se:
- Porque é que a Maria do Rossio, agora se
interessava tanto por mim?
- Porque terá ficado solteira?
Estas
interrogações, não o largavam e cada dia que passava tornavam-se mais intensas.
Um
dia, recordando-se daquele estrondoso e negro - NÃO - da Maria, quando da tentativa de namoro, resolveu, para
acabar com a dúvida, perguntar à rapariga o porquê de tanta dedicação.
- Por ainda gostar de ti - disse em tom
triste a Maria.
- Mas tu disseste ... a
Maria não o deixou acabar.
- Que querias tu que eu te dissesse, quando
aquela da perna manca, me dizia que eras amante dela?
O
Parente, débil ainda, sentiu que toda a sua força transformara em ódio. Rangeu,
como um cão, há muito raivoso, os dentes e balbuciou:
-
Maldita, cem vezes maldita, que desças
para sempre às profundezas do Inferno.
A confissão do Parente
A
transformação repentina do rosto do Parente preocupou a Maria do Rossio, que
lendo-o nos olhos, perguntou aflita.
- Não foi verdade? - NÃO - não se passou nada, não merecíamos isto. - responde o
Parente soluçando.
O
boato aliado à maledicência de uns provoca danos psíquicos irreparáveis, quando
não se tem a coragem de enfrentar o esclarecimento da verdade.
Estes
dois seres poderiam ser felizes se tivessem vencido a indecisão, aproximando-se
mais um do outro.
Pela
primeira vez na vida, aqueles dois seres, agora já idosos, abraçaram-se e
beijaram-se.
A
Maria do Rossio sai apressada da casa do Parente, do galinheiro e ao passar
pela tia Maria do Quintino, com a lágrima no olho, gaguejou respondendo.
- Vou à Boa Nova.
O
Parente tentou acalmar-se e sair daquele estado emotivo.
Sentou-se
no “burro” e descansou um pouco.
Recuperou
alguma força.
Decidiu
agradecer às suas benfeitoras.
Vestiu
o fato, aquele fato que vestia quando da Festa, o único que tivera em toda a
sua vida e saiu de casa.
Com
um ar solene, o mesmo ar de quando ia à frente da banda, atravessou o quintal.
Encontrou
a tia Maria Godinho e agradecendo beijou-lhe a mão.
À
tia Maria do Quintino deu-lhe um beijo na testa, o que levou esta a dizer - Parente, estás maluco.
Foi
de seguida para a Rua das Casas Novas, agradeceu ao doutor Galhardas e
dirigiu-se para o Santuário de Nossa Senhora da Boa Nova.
Parou
e leu a placa que encima o portão do cemitério.
Não
se deteve como aquela placa diz, mas abrandou o passo, as forças começaram a
faltar, mas não parou.
Respirou
fundo, sentiu o aroma da Primavera colorida, um ar que lhe parecia dar saúde.
O
seu mundo de recordações soltou-se e em avalanche e dominou o cérebro do
Parente. Sentiu-se jovem e viu-se em ajuda das vacas e na horta dos Vicentes.
Apreciou beleza feminina, viu-se forte e desgraçado. Sentiu o carinho e o calor
humano.
Rezou
a única oração que sabia, uma ave-maria.
Neste
deslumbrar de acontecimentos, com passos lentos de quem caminha numa das alas
da procissão de domingo de Prazeres, foi-se aproximando da cruz do encontro.
O
Sol entrara no poente com raios escarlates que pareciam quer ligar-se à
brancura da Lua nascente, que tentava iluminar a outra metade do céu.
O
Parente arrastou-se até à cruz.
Já
não caminha.
Levanta
a vista. Está entre o céu e o inferno, num mundo de tentações até então
desconhecido. Escreveu.
- Vem Parente, vem, - pareceu ouvir
chamá-lo todo o prazer que tinha experimentado e era tão pouco.
O
Parente hesita.
Uma
enorme ansiedade torna apodera-se dele, parecendo que algo sobrenatural o irá
para sempres destruir.
Aquele
vermelhão fere-lhe a vista, chora.
Na
parte branca do céu parece ver toda a bondade e a pureza de sentimentos que ele
procurara sempre seguir.
Sente
descansar a vista e parece recuperar um pouco a visão.
A
curta distância um vulto de mulher, aureolado em cor celestial, parece vir ao
seu encontro.
O
Parente, aflito e interrogativo, pestaneja para tentar ver melhor.
- Mulher ou Santa, a Maria do Rossio ou Boa Nova.
Não
consegue discernir.
O
vulto parou em frente do Parente.
A
uma vénia deste, o vulto correspondeu, sucedeu o mesmo à segunda.
À
terceira vénia, o Parente, cai de joelhos.
Tenta,
novamente, rezar, mas o peso daquele dúbio e pesado ambiente, acrescido pela
indefinida aparição, fulminaram o nosso protagonista.
.
Alcancei
este episódio, de difícil e comovente leitura, na sexagésima página da sebenta,
em discurso direto que mal consegui ler de manchado que estava, mas a maneira
como o traduzi corresponde à verdade.
No
resto da sebenta, não havia mais escrita, estava em branco.
Numa
verdadeira algazarrada chegaram os quatro primos, o Zé, a Chica, a São e o
Quim.
Em
uníssono perguntam-me pela tradução da sebenta, rindo, pediram-ma.
O
seu riso já não era de troça, nem de ironia mas de um interesse curioso de quem
queria saber a história de um homem simples, interessado e participativo, e por
vezes contestante.
-
Vocês não quiseram ter trabalho - disse-lhes
também sorrindo.
E
partiram contentes e ávidos de ler a tradução da sebenta.
Percorri
todas as freguesias do Concelho do Alandroal, com mais incidência em Terena e
Hortinhas, em busca de testemunhos da época. Poucos encontrei e, aqueles que se
dispuseram a falar, fizeram-no de forma desnorteada e sem nexo.
Uns
disseram-me que a lenda do Parente e da Maria do Rossio se sobrepôs durante
alguns anos, à lenda da Boa Nova até que a Festa voltou a cair na não
transparência dos resultados e da não afixação atempada das suas contas.
Outros
disseram-me que esta lenda fora uma farsa.
O
que ninguém negou foi que a tia Maria Godinho e a Maria do Quintino, indo à
procura do Parente, encontraram a sebenta junto à cruz do encontro e, com a
Maria do Rossio, banhada em lágrimas, incapaz de coordenar as ideias e os
acontecimentos, juntaram-na aos parcos haveres, no galinheiro que aquela lhe
emprestara, a última casa do tio Parente.
E
o leitor, que certamente me ajudou na leitura da sebenta, tem escrito a sua?
Tem
feito como ele, exercícios de cidadania, em prol das causas públicas?
Por
mim, acreditem, que fiquei maravilhado com as intervenções deste humilde e
honesto homem, deste Parente, que não foi meu familiar e, se o tivesse sido,
talvez, a minha escrita, a minha sebenta se assemelhasse à dele.
Helder
Salgado.
06-06-2012.
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