Uma história de vida protagonizada por mais um desfavorecido
da sorte, nascido e criado nas Hortinhas e que como tantos outros a quem a
felicidade não sorriu se viu obrigado a calcorrear terras limítrofes em busca
do ganha-pão.
História humana que nos remete para outras épocas e que por
certo irá avivar a memória de muitos não só pelas personagens que fazem parte
da mesma mas também pelos locais onde se desenrola.
Faz o Hélder questão de dedicar esta história a um amigo que
por força das contingências da vida se viu forçado a procurar uma vida melhor
noutras longínquas paragens;. O Manuel Augusto.
Chico Manuel
“BOA TARDE”
(O HOMEM SEM RUMO)
Ainda mal via, e ao colo de minha mãe, comecei a ouvir estas
palavras.
Depois com o meu crescimento físico e à medida do meu
crescimento mental, ia-me apercebendo da importância das palavras.
Cedo descobri que as palavras eram o melhor meio de
entendimento entre as pessoas.
Quanto me divertia o gesticular das pessoas quando
conversavam. Uns gesticulavam com gestos largos, com pequenas passadas e voz
alta, outros com gestos moderados e de voz baixa.
Quanto me irritava quando o meu pai me dizia: “não falaste, ou, porque falas a fulano, a
beltrano ou cicrano”.
Mas o que ainda mais me custava e me fazia sentir uma
revolta interior, porque não a podia exteriorizar, era quando alguma velha
fanhosa e com segundo sentido me cumprimentava “Bom-dia menino Helder; o menino está bonzinho?” e eu tenso, com o
sangue a fervilhar-me nas veias, vermelho como um pimentão e com uma vontade
enorme de a mandar calar ou para outro lado, mesmo sem ter o hábito de mandar
alguém, ali estava, caladinho, sem articular palavra pois se o fizesse, era a
minha mãe que me ajustaria as contas.
Como naquele tempo, ainda hoje me soa como uma melodia o
simples cumprimento “Adeus Helder” .
Era a época, uma época que depois reconheci que a palavra
não se deveria negar a ninguém, sobretudo aquelas duas palavras de saudação,
Bom-dia, Boa-tarde e com o Sol já posto, Boa-noite.
Apesar de se ter convencionado dar nome às pessoas e às
coisas, nunca me surpreendi com algum nome fora do vulgar ou até que me
parecesse aberração.
O que para ainda hoje não vejo explicação é para duas alcunhas
que puseram a duas pessoas, dois irmãos. Ao mais velho chamaram-lhe Boa-Tarde e
ao mais novo Bom-Dia.
Parece-me, na minha apreciação de atribuição destas
alcunhas, que estão invertidas.
O mais velho deveria ter tido a alcunha de Bom-Dia, pois
tendo nascido mais cedo dever-lhe-iam ter atribuído a primeira parte do dia, o
período da manhã e ao outro irmão, o da tarde.
Certo é que estas duas pessoas não se importavam com o
chamamento.
O Tonho Boa-tarde
Estas personagens nasceram na simpática aldeia das Hortinhas
e vieram morar para a histórica Vila de Terena.
Morar não será talvez o termo apropriado, pois muito
novinhos, para tratarem da vida, passavam muito tempo, épocas mesmo, fora de
casa.
O Boa-Tarde era uma pessoa de estatura meã, magro, simpático
e sempre sorridente.
Era, como me garantiram algumas pessoas que ainda lidaram
com ele, a bondade em pessoa.
Apesar da sua condição de pobreza, parecia sempre feliz e
quando conversava com alguém era um bom comunicador.
Bom gesticulador dando, enquanto conversava, pequenas
passadas, para trás, para frente e lados, sempre afável e sorridente.
Não fora à escola mas a sua capacidade de aprendizagem
permitia-lhe assimilar as questões mais correntes da vida.
Nasceu no monte do Outeiro, uma casa com duas divisões,
lajeada e com telhado de telha vã, encimada de ripas dispostas em salto de
rato.
A chaminé, apesar de fumosa, sobretudo no Inverno, era o
conforto da casa. Os grandes lumes de feixes de esteva, onde também se juntavam
uns paus de azinho, que a mãe recolhia das azinheiras secas e de algumas
atingidas por raios quando das trovoadas de Fevereiro, aqueciam toda a casa.
O menino Tonho, o Boa-Tarde, cedo se apercebeu que teria que
ir quente para a cama. Era composta de
tábuas de caixotes, provenientes da fábrica de sabão da Sofal, em Vila Viçosa , que nesse
tempo abundavam e onde a habilidade do mestre Está, carpinteiro de obra grossa
e fina, conseguiu pregar em quatro barrotes. Se ao contrário procedesse era
mais que certo, não se conseguir aquecer durante as longas noites invernosas.
Se a roupa da cama mal o aquecia, o mesmo se poderia dizer
da roupa que ele usava de dia, mas aqui a sua esperteza levava-o, a procurar as
soalheiras bem batidas pelo Sol e abrigadas do vento, sobretudo do vento suão.
Este atributo era divulgado pela mãe, que na mira de
proteger o filho ia contando à vizinhança.
O “Bicho” de são Miguel da Mota.
O pai, natural da região de Borba fora moleiro no moinho da
Figueirinha.
Este moinho, de uma só mó, tal como a maior parte deles,
estava situado na margem direita, no sentido do correr de água, na ribeira do
Lucefécit, perto da serra de São Miguel da Mota.
O Véstias de Borba não se cansava de enaltecer aquela
região. Sabia e descrevia todas as curvas da ribeira a quem o visitava. - É
a ribeira serpente, - dizia sempre esta frase, com uma contaminante alegria
visível no seu olhar.
Conhecia todos os pegos onde iria encontrar os patos
marrecos, onde via a fugitiva galinha de água, ou a rocha onde majestoso cágado
dormitava ao Sol.
Do que ele menos gostava era do pica-peixe ou guarda-rios,
não pelo vivo azul da sua cor, mas pelo seu voo rápido que o assustava.
Como se tornava
cómico na sua cuidadosa aproximação a qualquer freixo, cuja sombra se
reflectisse na água calma e serena, na mira se ver um opulento barbo ou uma
lontra.
- É um quadro com vida,
- comentava sorridente.
Mesmo não tendo veia poética, não se continha, e, por vezes,
lá aparecia uma quadrazinha.
“ Neste lugar tão agreste
Serra de rara beleza
O
encanto que me deste
É um
bem da Natureza”
No Inverno e na Primavera, o Véstias de Borba muito
raramente ia a casa.
Era preciso aproveitar a corrente das águas e moer o mais
possível, pelo que estava muito tempo sem ver o filho. Alguns domingos ia a
mulher, a tia Vicência Marona, ter com ele evitando levar o menino, pois o
caminho era rochoso e muito ladeirento.
Espalhada estava a
notícia, e com ela algumas suspeições, passadas de boca em boca, que as cabras
da herdade de São Miguel estavam sendo dizimadas por um bicho.
Boatos correriam que
o bicho, não era quadrúpede.
O Véstias de Borba, o
moleiro, começou a sentir-se incomodado com aquela conversa do bicho.
Não era natural do
concelho do Alandroal e ainda residia há pouco tempo, na Aldeia das Hortinhas,
passando a maior parte do tempo no moinho.
Um dia, para
tranquilizar o seu espírito, resolveu ir falar com o lavrador.
Da conversa nasceu a
ideia de fazerem uma emboscada ao bicho.
Armaram-se de
caçadeira e esconderam-se numa gruta, ainda hoje existente na margem direita da
ribeira, frente ao sopé da serra, que termina com uma nesga de terra rente ao
leito da água.
Ali estiveram, regelados, até alta madrugada quando ouviram
um som esquisito.
Suspenderam a respiração e aguardaram numa quietude de
estátua.
Quatro inquietos javalis farejavam os ares, parecendo
procurar algo que outrora ali encontraram.
Os dois homens, o moleiro e o lavrador, logo tiveram a percepção
que aquele local fora palco de qualquer cena fora do habitual que aquele rude sítio
poderia oferecer.
Abandonaram o refúgio antes do Sol nascer, para não serem
descobertos e combinando outras emboscadas.
A visita nocturna dos javalis tornou-se rotineira, até que
um dia uma estranha personagem a interrompeu.
Sentou-se, sem perda de tempo e com um á vontade, de quem
entra naquele jogo, já há algum tempo.
A expectativa dos dois homens aumentou, como aumentou a
contenção da sua respiração e a sua curiosidade.
- Quem será e que virá
ali fazer aquele sujeito, aquela hora da noite?
Esta pergunta afluiu,
em primeiro lugar ao cérebro dos dois homens, mas logo foi sobreposta e
confirmada por outra, quando o berrar aflitivo de uma cabra se fez ouvir.
O cérebro do moleiro sorriu de contente e de alívio.
Aquela cena irradiaria para sempre alguma suspeição, que
julgava recair sobre ele.
A cabra arrastada pelo cabreiro, o Zé da Mota, que ganhara
esta alcunha, pelos longos anos de servidão na herdade de São Miguel da Mota, sentia
que teria o mesmo fim que tiveram outras suas irmãs de raça, há muito tempo e
ali bem perto sacrificadas em nome de um Deus ou de um Demónio, mas sempre
sucumbidas pela mão assassina do Homem.
De caprina em caprina geração fora passada a notícia e ela,
cabra, estava prestes a ser abatida, não em nome de uma divindade, mas agora em
nome de um bicho, uma invenção de um talhante sem escrúpulos.
Nos intervalos da sua aflição, do seu berrar, a cabra pensou:
- Que diferença me faz a mim ou às minhas
irmãs de raça ser abatida por um agiota ou por um sacerdote? Que Deus é este
que instrumentaliza os humanos e se sacia com o nosso sangue?
Queria com os seus berros de indignação, dar uma lição aos
Humanos, aqui, e na sua compreensão animal, representada pelo cabreiro.
Na resistência ao seu
moural, a cabra interrogava-se sobre os dogmas que as faziam unir em rebanhos,
em bardos para seu conforto para depois lhe subtraírem os filhos, em apriscos
para lhe tirarem o leite, para depois, com elas doutrinadas e indefesas, as
sacrificarem em nome da fé, duma fé que nem ela, nem a sua família caprina conseguiam
compreender e que agora a levava ao desespero.
E mais se interrogava porque não as deixavam livres e
senhoras da sua própria vontade, como outrora viveram na serra de São Miguel,
nos montes da herdade da “Deluques” e na serra de Ossa?
Ao ouvir os berros da cabra a estranha personagem, que todos
falavam em surdina e alcunhavam de bicho, precipitou para o local do som. Não
tiveram dúvidas os emboscados: O bicho ou melhor os bichos de São Miguel eram
bípedes.
O moleiro num gesto arrebatado tirou a espingarda ao
lavrador e disparou os dois tiros de chumbo zagalote, por cima da cabeça dos
dois comparsas, que varejaram um chaparro, cujas bolotas chicotearam o Zé da
Mota e o velho Caturra, o talhante da aldeia.
A cabra agora solta continuou a berrar, numa entoação de
contentamento vitorioso, de liberdade.
A tristeza do cabreiro
Ás cinco e meia da madrugada o cabreiro entra na casa da
malhada.
As cinzas de um lume, já apagado, pareciam adivinhar o fim
de uma tragédia.
Ainda quentes, mas já moribundas, tal como a alma do Zé da
Mota, que ao entrar em casa parou petrificado e incapaz de responder à mulher, ainda
davam uma réstia de calor.
- Mais uma vez... bem te avisei... e os tiros?
Decerto que foram para ti e para esse velho ganancioso que te fez ladrão.
Ao choro da filha a
Maria Pulguita, a mulher do cabreiro, recolheu ao quarto.
Zé da Mota nem uma palavra
articulou, mas o seu rosto sofreu uma torrente de lágrimas, maior do que uma
enchente da ribeira provocada pelas fortes enxurradas do mês de Fevereiro.
Puxou uma cadeira, sentou-se e encostou a cabeça nas costas de outra. Assim
esteve até ao romper do Sol.
Ao seu despontar sai de casa e vai a caminho do monte. O seu
caminhar é o de um homem que se deixara vencer por umas bebedeiras e umas
conversas ardilosas, teia viscosa e enleadora de onde não se consegue sair
quando se lá cai.
O vale do Lucefécit, com a sua estrondosa vegetação, onde
outrora, na sua imaginação de sonhador, parecia ver São Gens acenar-lhe e a Boa
Nova em cima do telhado do seu Santuário de lenço branco na mão fazer o mesmo
gesto, via-o agora seco e agressivo, com as silvas e os carrascos a tentarem
esgatanhá-lo.
Chegado ao monte sentou-se no masseirão onde os cães e os
gatos comiam, pensando no futuro que ele julgava próximo, não teria que dar de
comer à mulher e à filha.
Ao julgar-se prisioneiro afluiu-lhe ao cérebro esta canção:
“Ó vale do Lucefécit
Ribeira da minha paixão
O teu
leito já me parece
O fosso da minha prisão”.
Dois pequenos e
simultâneos ruídos fizeram-no voltar á realidade.
Atrás estava a mulher
com a filha ao colo e á frente o patrão acabado de sair de casa.
O cabreiro estava a
viver os piores momentos da sua vida, estava entre o acusador e o juiz,
disposto a receber o castigo que o marcaria para o resto da sua vida, como a da
sua mulher e da filhinha. Aqui não continha as lágrimas de revolta e de
recriminação.
Sem defesa restava-lhe ouvir a sentença e partir.
Partir para onde? Sozinho ou acompanhado? Decerto que a
mulher o abandonaria.
Neste cogitar de ideias viu-se numa cabana entre as rochas
mais altas dos Castelinhos ou no maciço rochoso do Poio Grande, mais acolhedor
e virado ao nascer e correr do Sol.
Estes pensamentos fervilhavam no confuso e agitado cérebro
do Zé da Mota.
O gélido silêncio é interrompido pelo patrão.
- Vieram por causa dos tiros? Fui eu e Véstias
de Borba. Não matámos o bicho, mas ficámos com a certeza de que ele não mais
voltará. Tinha que defender as cabras, são minhas e são o teu sustento, é delas
que vem o leite para a tua filha, a carne para a tua família e o salário para
te pagar.
Zé da Mota, soluçando, ia começar a falar, o patrão
interrompeu-o:
- Não digas nada, vão descansar, a história do
bicho de São Miguel acabou agora e aqui.
Uma lágrima de ira vincou para sempre o rosto do cabreiro. -
Ah se eu pudesse deitar as mãos ao
Caturra, - pensou com a fúria de um cão raivoso.
A inesperada ida ao monte Outeiro do Véstias de Borba.
Nesse mesmo dia o moleiro vai a casa para contar a mulher, o
sucedido.
Tinha que exteriorizar à esposa os seus pensamentos e
receios, que agora se mostraram infundados com o desmantelamento da cena do
bicho.
No decorrer da conversa, o casal nota que o seu filho, Tonho,
ouve esta com uma atenção não própria de uma criança da sua idade.
Nos seus lábios floriu um sorriso que impressionou os pais.
Um sorriso diferente de todos os outros meninos e nunca visto em alguém, um
sorriso angelical.
O Boa-Tarde estava a ser criado quase só com a mãe e, da
pouca convivência com o pai advinha-lhe a sua admiração e respeito. Além disso
o pai falava-lhe doutra região, com muitas hortas e árvores de fruto, que o
fascinavam.
Só na manhã do dia seguinte o Véstias de Borba voltou ao
moinho.
Voltava contente e ainda mais contente porque a esposa
compreendera a sua inquietação. Contudo uma interrogação lhe afligiu o
pensamento, por não conseguir decifrar a desmedida atenção do filho.
Os coelhos bravos, que de noite procuravam os seus
alimentos, no seu regresso às suas moradas olhavam para ele e não fugiam, as
perdizes que começavam a sua safra em busca dos alimentos do dia, paravam ao
vê-lo passar, os trigueirões faziam-lhe guarda de honra e saudavam-no com o seu
trinado cantar.
Até respirava fundo para cheirar as estevas e o rosmaninho.
O moleiro não resistindo a tamanho encanto, quis também
fazer parte daquela harmonia campestre, para ele triunfal.
Improvisou esta quadra e cantou:
“O bicho
já é passado
E do medo que dele tive
Já estou eu aliviado
Agora sou homem livre”.
O eco retornava-lhe sete vezes o último verso “ agora sou homem livre” ,a frase que ele
mais gostara de ouvir.
A primeira relação com a casa Godinho
Um dia a tia Marona, desceu ao monte do tio António Godinho,
para pedir um pouco de azeite, que o seu, proveniente do rabisco das azeitonas
que ela apanhara e que foram moídas no lagar de Terena, há muito que se
acabara. Contou ao lavrador a esperteza do seu menino Tonho, mais tarde
alcunhado de Boa-Tarde.
No lavrador e na sua mulher, a dona Aldonça, logo nasceu a
curiosidade de conhecer o menino.
Este começou a andar muito cedo e logo que saiu de casa,
tendo já algum tacto, descendo a ribanceira, que ligava o pequeno aglomerado à
herdade do tio Godinho, atraído pela beleza do gado vacum, que para ele,
menino, se chamavam apenas bois.
Colheu umas ervas e apontou-as ao focinho do primeiro animal
que encontrou.
A vaca, que nunca tinha visto tão minúsculo tratador, olhou
admirada e aceitou a comida.
O menino Tonho sorriu de admiração ao ver-se rodeado pelos
animais, que no seu íntimo aplaudiam o gesto benfazejo daquela criança, quando
a lavradora, que no momento varria a rua do monte, surpreendida com a junção
dos animais, nota que estes rodeiam uma criança.
Esbaforida corre célere ao encontro do menino, levada por
trágicos pensamentos que se poderiam ter realizado, não fora a sua providencial
intervenção.
O menino na sua inocência sorri, longe de compreender a
aflição da sua julgada protectora.
Os animais ficam surpresos pela acção de espanto da dona,
pois também eles não conseguiam compreender a sua preocupação.
A dona Aldonça Godinho ao levar menino para o monte, vê que
ele continua sorrindo, num sorrir desafiante perante um futuro que ela lia nos
seus olhos cheio de dificuldades e de incertezas e que no seu raciocínio de
mulher experiente terminavam em tragédia.
Ao chegar a casa contou ao marido este estranho
pressentimento. Este depois de sentir um calafrio percorrer-lhe o corpo, disse
para a mulher, sem nenhuma convicção, que nada se disso se iria concretizar.
O menino depois de tomar banho e de vestir roupa nova,
embora usada pelos filhos da lavradora, almoçou no monte do tio António
Godinho.
Este nobre gesto fez-se ouvir em toda a freguesia de São Pedro
de Terena e era, constantemente, lembrado pelo menino Boa-Tarde, que na sua
ainda pequena maneira de pensar se julgava herói.
O crescimento do Boa-tarde
Passados quatro anos e meio nasce o irmão Inácio, o Bom-Dia.
O Boa-Tarde cedo se apercebeu que tinha que partilhar tudo
com o mais novito, desde a comida, a roupa e a cama.
Cedo começou a pensar que para sobreviver um pouco melhor
teria que sair cedo de casa dos pais.
O seu encantador sorriso parecia cativar as pessoas que
nunca lhe negavam uma resposta ou um conselho, que ele, criança, assimilava e
registava para futuro.
O monte do Godinho era para ele uma atracção.
Estava perto da casa da mãe. Além do gado vacum, tinha toda
a espécie de galináceos, cães, gatos e porcos.
Com o seu crescimento e sobretudo com o seu poder físico foi
alargando a sua esfera de acção, que o levou até à aldeia, onde se apercebeu
que uma lavradora, a tia Joaquina Aperadora, tinha fama de boa pessoa e não
negava uma esmola a quem quer que fosse.
A época das matanças celebrizou esta senhora até aos nossos
dias pela esmola ser sempre a rechina.
É-lhe atribuída esta quadra, que se popularizou até hoje.
“Tia Jaquina Aperadora
Lavradora da Aldeia
Não me deia mais rechina
Já tenho a barriga cheia”.
A mãe, a tia Marona embora lhe agradasse os géneros trazidos
para casa pelo filho, não lhe agradavam muito as suas deambulações, cada vez
mais alargadas pelos montes da aldeia.
Combinou com o lavrador Godinho, em levar o menino Tonho para
o monte, onde iria guardar perus.
O Boa-Tarde ficou radiante, muito embora não lhe agradasse
guardar perus.
Ali no monte teria a barriguinha cheia e ainda levaria
alguma comida para o irmão mais novo, pois já se tinha apercebido que a senhora
Aldonça Godinho, a madrinha como ele lhe chamava, gostava dele e ainda ficaria
perto das vacas, agora com mais liberdade devido ao seu crescimento.
Como ele adorava ver o gado vacum a lavrar e como se
divertia com a ladainha do carreiro para dirigir as vacas, enquanto lavravam.
Um dia não resistindo pediu para pegar na rabicha da
charrua. O carreiro deixou-o pegar, mas a sua falta de força não permitia a
continuidade do rego, tendo o carreiro pressionado, com a sua mão em cima da do
Boa-tarde, a rabicha. Este ficou com a mão dorida e não mais quis lavrar.
O que ele adorava era tratar do gado vacum sobretudo da
bezerrinha que lhe morrera a mãe. Delirava quando com a mão dentro de uma
vasilha com leite, a bezerra chupando os seus dedos bebia o seu alimento.
Entre ele e a bezerra nascera uma espécie de amizade mútua.
A bezerra, logo que solta ia ter com ele e brincavam os dois, ora saltando, ora
correndo.
O tempo vai correndo e com ele ambos vão crescendo
O Boa-Tarde começou a pressentir que a bezerra ia ser vendida
na feira de Janeiro, em
Vila Viçosa. Uma estranha tristeza começasse a apoderar dele.
O filho mais novo do patrão o Zé, que fora padrinho de baptizo
do Boa-Tarde, não com este nome mas com o de António Marono, explicou a razão
da venda da bezerra e para contentá-lo ofereceu-lhe o serviço de ajuda de
porcos, dando-lhe uma marranita, com poucos dias de idade.
O Boa-tarde depressa esqueceu a bezerrinha, pedindo para
dormir na cabana, onde existiam compartimentos para porcos.
Em cima da parede divisória das pocilgas arranjou a cama,
cujo enxergão feito de sacos de sarapilheira e cheios de palha de centeio, não
precisava de colchão, nem de lençóis.
Dormia vestido e só nas noites mais frias de Inverno é que
se cobria com um velho capote aguadeiro.
Assim passou até aos
dezasseis anos altura em que se sentiu capaz de governar sozinho.
O Boa-tarde deixa o monte do Godinho
Ponderou durante algum tempo a sua saída do monte do tio
Godinho.
O irmão mais novo Inácio, o Bom-Dia, depois de uma infância
difícil, de pida, acrescida pela prematura morte do pai e que ele, Boa-Tarde se
julgava no dever de auxiliar, tinha-se anexado no monte do Alvarinho, nos
Orvalhos, onde se manteria até ir para a Guiné, combater os movimentos de
libertação, em mil novecentos e sessenta e seis, onde fora condecorado.
Com efeito o Véstias de Borba, depois de uma demorada
constipação, que resultou uma dupla pneumonia vem a morrer, num dia de violenta
tempestade, debaixo do pontão nas curvas do Pego-longo.
O Boa-Tarde sofre o seu primeiro desgosto.
Testemunhos vivos, ainda da época, confidenciam-nos que ele,
no seu sentido e dolorido pranto, não se cansava de dizer “ foi a corrente de ar e a grande molha que o
matou”.
Com o dinheiro da venda da porca e dos porquinhos e com o
pouco que amealhou da soldada, comprou uma burra, depois um carro de varais e
logo que juntasse mais algum dinheiro compraria umas ovelhas.
Doloroso foi a ato de despedida do seu padrinho Zé Godinho.
Pela segunda vez na vida, o alegre e fascinante sorriso do
Boa-Tarde não se viu nos seus lábios.
A sua hesitação do abalar do monte do Godinho foi vencida
com esta frase do padrinho:
- Segue a estrada da tua vida, se nela
encontrares obstáculos, procura-me que eu te auxiliarei.
Dias depois confidenciaria o Boa-Tarde, a um amigo, “se não fosse a aquela frase do meu padrinho
derramava muitas lágrimas”.
A antiga herdade de D. João
Diziam e ainda hoje se diz em Terena, que esta herdade fora
dividida pela povoação de freguesia e tomara o nome de Coutada.
Este dito é atestado pela existência de pequenas courelas,
encabeçadas por pequenas divisões chamadas sesmos.
Muitas pessoas, ou por terem saído da Terra, ou por
incapacidade de arranjar as courelas, não as cultivavam, dando a pastagem sem
nenhuma contrapartida ou em troca de um borrego.
Foi assim que o Boa-tarde se tornou pastor.
Erigiu dois bardos na
Coutada. Um perto das Hortinhas, outro perto de Terena, assim teria desculpa
para praticar a transumância.
Para abeberar as ovelhas e a burra tinha a ribeira ou ainda
podia usufruir de dois poços concelhios, o de Beja situado na herdade dos
Barros, hoje com o acesso vedado e o das Alcaçarias perto da Vila de Terena
além da fonte da Ferrenha, o sítio que lhe dava mais jeito.
Outra arte que nele se conheceu foi o de preparar cães para
a caça nomeadamente para apanhar coelhos nas silvas e lebres na cama.
Aos cães era-lhes ensinado a andarem debaixo do carro da
burra, aí se protegiam das chuvas e dormiam se não encontrassem melhor cama,
porque com eles, além do comer, o Boa-Tarde pouco se preocupava. Nem com os
cães nem com ele próprio. Dormia em qualquer lado. Um guarda-chuva grande para
abrigo do vento e da chuva, um plástico por baixo e outro por cima para lhe
servir de cama, sempre ao abrigo de um espesso carrasco.
Um dia o velho Chico Claré ofereceu-lhe uma choça, feita de
estevas e piorno, já velha mas a que ele chamou de palácio.
O Boa-tarde e as meninas
Entre Vila Viçosa e o Redondo gerou-se uma disputa na área
da sexualidade.
As raparigas eram
quase sempre as mesmas, uma semana estavam em Vila Viçosa , com um
pseudónimo de, a espanhola, a francesa, a china e na semana seguinte no Redondo
com outro nome a Lolita, a Arlete, a Chinesa e assim se iam governando e
desgovernando quem delas se utiliza-se em demasia.
O Boa-Tarde, aqui com alguma cumplicidade do padrinho,
estreou-se com a Lolita.
Não foi fácil esta estreia.
No seu asseio pessoal o rapaz deixava muito a desejar e o
cheiro dos porcos, muito activo e difícil de eliminar, era factor de recusa das
meninas e, apesar de pagar, por vezes, o custo da chapa, objecto que a troco de
dinheiro permitia a entrada no quarto, onde estava a rapariga e o uso desta.
O padrinho achou neste acto, pagar e não ser servido, uma
enorme injustiça.
Escutou a queixas do afilhado e resolveu falar com a patroa
e a Lolita.
Para qualquer prostituta era, não só um triunfo fazer perder
a virgindade a qualquer rapaz, mas também um divertimento com as suas reacções.
Com o Boa-Tarde era diferente por causa do maldito cheiro
dos porcos.
Pelo cativante sorriso e simpatia do rapaz, a Lolita
condescendeu impondo uma condição:
- Levanto a saia,
deito-me atravessada na cama e ele não me toca.
Com a sua experiência no ofício sabia bem que o ato praticado
pela primeira vez, duraria apenas breves segundos, ganharia o dinheiro e teria
para sempre a gratidão do Boa-Tarde e do padrinho.
O cheiro do Boa-Tarde era surpresa para a ela que começara a
relacionar com o Chico Maluco, natural da Malhada Alta e porqueiro no monte do
Covão. Apesar das muitas relações sexuais com ele praticadas nunca sentira o
cheiro que o Boa-Tarde deitava.
O Boa-tarde ficou feliz com o ato mas uma enorme confusão
apoderou-se dele, a ponto de se julgar, mais uma vez, enganado e desejou de ir
novamente às meninas.
Uma decisão acertada, senão milagrosa.
O Chico Maluco entendia-se, lindamente, com a Lolita quer na
conversa, quer na cama.
Até então o Chico, por ser meio destrambelhado, nunca
namorou, nem nenhuma rapariga o quis, encontrava na Lolita a compreensão e o
carinho que nunca antes sentira.
Uma crescente simpatia, que pouco a pouco os aproximava
mais, ia-se tornando em paixão.
Por sua vez a Lolita estava saturada daquela vida que se
assemelhava a uma prisão, por pouco sair à rua e quando saia, logo que
reconhecida, era vexada e maltratada, além disto, no exercício da prostituição
encontrava clientes que judiavam com ela, confundindo a virilidade com a
brutalidade.
Exibia no seu corpo nódoas de beliscões provocados por
clientes, que destituídos de qualquer cultura, pareciam julgar que estas
mulheres não eram seus semelhantes.
A Lolita não hesitou, até porque já gostava do Chico, quando
este, a medo lhe pediu para ir viver com ele.
Poucos dias depois estava no monte do Covão.
O porqueiro quando da capação dos porcos para a engorda,
recorria ao Boa-Tarde.
Eram necessárias três pessoas. Uma para apanhar o porco,
outra para capá-lo e a terceira pessoa para o chapinhar com água e creolina,
não fosse a ferida infectar-se ou ganhar bichos. A Lolita poderia ocupar-se
desta última tarefa.
Ao fim de um mês a viverem na casa da malhada e depois de se
irem conhecendo mutuamente, a Lolita conta ao Chico que este nome não é o dela
e que se chama Conceição.
- Conceição -
repetiu o Chico sem se impressionar e continuou.
- É a santa da minha
Igreja há missa todos os primeiros Domingos do mês, às vezes vou lá, e todos os
anos ajudo na Festa, - conclui com uma firmeza que impressionou a rapariga.
No primeiro domingo do mês de Fevereiro do ano de mil
novecentos e cinquenta e sete, o Chico Maluco está com a rapariga a quem ele,
carinhosamente, já considerava mulher, ajoelhado perante o altar de nossa
Senhora da Conceição da Fonte Santa.
Tentou rezar - Ave
Maria cheia de graça; Pai nosso que estais
no Céu - era das orações o que sabia.
Sentiu-se
envergonhado. Olhou para a Conceição e
viu-a compenetrada em rezar.
Como não a queria deixar sozinha decidiu rezar à sua
maneira.
Levantou a cabeça,
procurou os olhos da imagem e desta forma diz:
- Senhora da Conceição sabe que não sou maluco
e não sou mau rapaz, nunca briguei, nem roubei nada a ninguém. Tenho ao meu
lado a mulher que amo. Bem sei que a fui buscar a uma casa de p..., sucedeu. Já
olhei duas vezes para ela. Não tira os olhos de si. Deve estar a pedir perdão
para os seus pecados. Não me importo com o passado dela., se assim fosse não a
tinha ido lá buscar. Diga-lhe isto. O
que me interessa é o dia de amanhã, o futuro e hoje já a tenho ao meu lado.
- Olhou novamente para a Conceição que não pestanejava e de imediato para a
Senhora e pensou - Se estiver a pedir
perdão, perdoa-a, sempre é melhor.
Ao acabar a frase sentiu uma enorme sonolência. Fechou os
olhos e baixo a cabeça.
Assim esteve até acabar a missa.
Ao ouvir, em voz suave - Francisco,
Francisco - que ele julgou ser divina é que saiu aquele estado
sonolento.
O casal Francisco e
Conceição foi a admiração de todas as pessoas presentes na missa, gente das
redondezas e os seus conhecidos da Malhada Alta.
O Jacinto, o seu maior amigo, até gritou de contente: - O Chico já deixou de ser maluco.
Todos sorriram e o casal não se deteve sem trocar, ali
mesmo, um beijo amoroso, que a Conceição e o Francisco consideraram milagroso.
Um pedido satisfeito
A casa da horta tinha apenas um compartimento. Nele se
cozinhava, nele se dormia.
Embora isso não afectasse a felicidade de ambos, o Francisco
decidiu pedir ao patrão, um quarto e a cozinha no monte. Este raramente lá ia e
tinha no Francisco uma confiança total, disse que sim. Podia servir-se de tudo
o que existia na cozinha e das mobílias do quarto.
- Só temos que comprar as roupas, podemos
suportar esta despesa sem custo nenhum, - disse o Francisco com uma enorme
satisfação à esposa e de um modo de quem via reconhecido o seu esforço e a sua
abnegação.
A grande surpresa do Boa-tarde.
A sua tendência em conhecer os locais onde o pai quando
rapaz viveu, fê-lo ir até Borba, por ocasião da feira dos Santos. Aproximou-se
da feira do gado muar e cavalar.
O seu aspecto de boa pessoa aliada ao seu sorriso e ao seu
rosto tisnado pelo Sol, não passou despercebido Jaquim Cigano, que o convidou
para seu auxiliar na venda de uma parelha de machos, que tinha a seu cargo.
Três notas de cem escudos foi a cortagem dada pelo cigano ao
Boa-tarde.
- Não faltarei a nenhuma feira, três notas de
cem ganhas em tão pouco tempo. Quantos
dias tenho eu que andar atrás das ovelhas para fazer este dinheiro?
Pensava o Boa-tarde com um desmedido entusiasmo a roçar uma
ganância em si desconhecida.
Todos os anos o Chico Maluco chamava o Boa-tarde para o
ajudar na capação dos porcos. O Boa-tarde depois de deixar tudo arrumado em
relação às ovelhas, parte para o monte do Covão, a cavalo no carro de varais
puxado pela burra e com o Bailarico, o cão. Sempre era mais um dinheirito que
entrava.
Quando lá chegou o Chico, com um sorriso de contentamento
diz para o amigo:
- Já cá tenho uma mulher, amiguei-me.
- Está a brincar comigo - disse incrédulo
o Boa-tarde.
A operação de capação
dos porcos tinha sempre lugar depois do almoço.
Prepararam os fios,
deram um arranjo ao local da capação e afiaram a navalha. Tudo estava preparado
para o começo da tarefa, quando uma voz feminina, clara e bem timbrada suou,
ecoando o chamamento para o almoço.
A simplicidade do Boa-tarde tornou-se interrogativa. “O Chico diz que tem uma mulher e vamos
almoçar na cozinha do monte”?
Ao entrar na cozinha pasmou de admiração, nunca tinha visto
uma mesa tão bem composta e cheia de comida,
habituado que estava ao pão com morcela e toucinho, por vezes com azeitonas,
embora na casa Godinho comesse à mesa com o lavrador.
Delicado como era esmerou, sem grande custo, um afável
sorriso e falou à mulher.
- Bom dia minha senhora - Bom dia - retribuiu a Conceição sem olhar
para o convidado.
Sentados os três á mesa o Boa-tarde olha duas ou três vezes
para a senhora, parece reconhecer nela a Lolita, mas como o Chico a tratava por
Conceição ficara confuso.
O começo da obra começou com tudo a correr bem, embora a
ideia de saber se rapariga era ou não a Lolita, não saísse da cabeça do
Boa-tarde.
De repente lembrou-se que, mesmo com rapidez da prática do
ato sexual com ela praticado, no Redondo, fixara uma grande nódoa na parte
interior da coxa direita da rapariga. Para confirmar isso teria que levantar a
saia à senhora e arriscar-se-ia a levar uma sova dela e do Chico.
- Nunca farei isso,
- pensou receoso o convidado.
O último porco a capar mais possante e arrisco que o
anterior, escapa-se aos dois homens e foge. O Chico vai ao celeiro buscar um
caldeiro com favas para atrair o animal.
Sozinho com a Conceição ocorre-lhe a ideia o que o Estroino
e o Matassa, um dia lhe disseram - uma
relação com uma mulher não fica completa senão a beijarmos.
O Boa-tarde não perde tempo, tira da carteira três notas
cuja efigie era o Pedro Nunes e diz:
- Tu és a Lolita deixa
dar-te um beijo, - disse de rompante e sem medir as consequências.
Mal acabara a frase tem na cara uma violenta bofetada, mais
forte que o safanão do porco fugitivo.-
Porra, tem mais força que um homem - resmungou o visitante, que de imediato
vai ajudar a apanhar o porco.
A Conceição tinha pedido perdão pelos seus atos, muito
embora não se julgasse ser só a culpada.
A desarmonia conjugal onde fora criada e o seu abandono pelo
pai aos quinze anos levou-a sair de casa.
Pensou que o rapaz de quem ela gostava e que muito lhe
prometera, a levaria para sua casa. Puro engano. Depois de passarem alguns dias
juntos abandonou-a.
Um homem muito mais velho que ela recolheu-a, durante algum
tempo e a até ela engravidar.
Um calvário de maus tratos caiu sobre a Conceição.
Pensou que o aborto seria a saída possível para continuar
sobre a protecção daquele homem que começava a odiar, mas que era ainda o seu
único amparo. Mais um engano.
Restou-lhe a prostituição mas sempre pensando que um dia o
futuro surgiria.
Agora ali no monte do Covão, onde o azul do céu lhe parecia
diferente, deixando brilhar o Sol com uma intensidade acolhedora, cujo prateado
da Lua o secundava maravilhosamente e onde nos dias de Sol e nuvens adorava o
encanto e as cores do arco-íris.
Ela tratava das galinhas, dos perus e dos patos. Brincava e
corria com o cão. Sentava-se à soalheira com o gato enquanto costurava. Condoía-se
do piar noturno das corujas e dos mochos, mas divertia-se e assustava-se com o
voar rasante dos morcegos.
Estava a viver o sonho que ela no fundo sempre aspirara e
que agora com o Francisco estava a tornar-se realidade, além disso julgava-se
perdoada de todos os seus pecados e não seria agora o Boa-tarde que desmuraria
todo este encanto.
O marido adorava-a e apreciava a sua comida sempre feita a
tempo e a horas.
Tanto ela como o Francisco, depois de sentirem algumas
hesitações nas pessoas, eram agora respeitados por quem os visitava, sobretudo
pelos vizinhos mais próximos.
Num suspiro de alívio pensou - Serei, eternamente, fiel ao meu Francisco.
Este ato isolado de falta de respeito em nada belisca o
nosso protagonista, será a única excepção pois não mais se ouvira uma palavra
em desabono da personalidade do Boa-tarde.
A confissão do Boa-tarde
Regressado a Terena conta o sucedido no monte do Covão aos
dois amigos. Estes para contentar o Boa-tarde e para ao mesmo tempo se
satisfazerem e se divertirem prontificam-se a levá-lo às meninas de Elvas por
altura das festas do São Mateus, advertindo que teria que pagar a despesa.
O nosso protagonista, levado sempre pela tendência que tem
por Borba e arredores, trava conhecimento com um negociante, de Bencatel, de
nome Xarila, a quem vende os borregos recebendo uma pequena parte do dinheiro,
com a promessa de quando este os vendesse receberia o resto.
Havia dinheiro para a festa.
Começava-se adivinhar um futuro algo anormal até mesmo
trágico na vida do Boa-tarde, acrescido por lhe morrerem três ovelhas com a
doença súbita das sete sêmeas.
É chegado o dia de São Mateus, as maiores e as mais
completas e vistosas festas da região e nelas revelamos a chegadas dos Pendões.
Nesse dia havia tolerância na fronteira e os habitantes da
vizinha Badajoz enchiam as ruas da cidade de Elvas.
O Matassa e o Estroino levaram o Boa-tarde para a ribeira do
Lucefécit e no pego da correntinha obrigaram-no a lavar-se, vencendo a
resistência deste com a advertência que lhe poderia suceder o mesmo, que
aconteceu no Redondo. Arranjaram-lhe calças e casaco, camisa e gravata. Calçado
é que não conseguiram arranjar.
Ei-los em Elvas, em plena festa de São Mateus.
Passada a preocupação dos três amigos em arranjarem
alojamento, passearam despreocupados pelas ruas da cidade até à esperada casa
das meninas. Depois destas contratadas e com um especial acautelamento com a
que era destinada ao Boa-tarde, separaram-se para exercer o ato.
A casa estava cheia de clientes e um calor abafadíssimo
instalou-se nos aposentos das raparigas, de tal modo que algumas, para se
refrescarem, ligaram nos seus quartos as ventoinhas.
O Boa-tarde é convidado a entrar no quarto da prostituta,
que de robe aberto refrescava e descansava um pouco o seu corpo, cansado de
tanto ser usado naquele dia de Festa.
O nosso homem mirou-a de alto abaixo.
Contou depois - tinha
as mamas aguçadas, bem pintada e sem nenhuma nódoa no corpo.
- Despe-te ordena a
rapariga.
O Boa-tarde assim procedeu. Despiu-se primeiro da cintura
para cima, depois baixou as calças e sentou-se num banco e descalça as botas,
no momento em que o fluxo de ar emanado da ventoinha se fez sentir, espalhando
pelo quarto as palhas saídas das botas.
- Sai daqui -
gritou a rapariga furiosa.
Estava ainda o
Boa-tarde a atacoar as botas quando
chegaram os dois amigos, que logo se recriminaram por aquela imprecaução.
Positivamente a sorte era adversa ao Boa-tarde em íntimos
relacionamentos com o sexo oposto.
Dizem as boas ou más-línguas que chegaram até aos nossos
dias, e que muito honestamente julgamos exageradas, que o Tonho Boa-tarde
deixou para os lados de Elvas, cerca de trezentas notas com retrato de Dona
Maria.
Certo é quando chegou do São Mateus o dinheiro para pagar o
táxi foi á conta.
A decadência do Boa-tarde
Sem dinheiro para sobreviver pensou em vender algumas
ovelhas, mas estas não lhe faziam despesa e ainda vendia alguns borregos, não
ao Xarila enquanto não lhe pagasse o resto, mas a outras pessoas, por ele
julgadas, mais sérias.
Decidiu vender o cão, o Bailarico e assim fez. O cão agora
bem tratado tornou-se o melhor cão de caça da freguesia de Terena. Consta-se
que nas margens do Guadiana, na herdade da Defesa, apanhou nove coelhos
seguidos.
O dinheiro do cão durou uma semana e pensou pedir dinheiro
ao padrinho. Receoso não o fez, vindo a pedir a um sobrinho deste.
A sorte parecia abandoná-lo com a morte de mais quatro
ovelhas, quando o Chavanquinhas lhe disse que o porqueiro do monte de Dom Pedro
morrera. Não perde tempo e para lá se dirige ficando no lugar do porqueiro.
Vende o resto das ovelhas e o carro ficando só com a burra.
Não faz mais nenhuma feira e parece desgostoso.
O seu sorriso já não
tem a alegria de outrora e só a recupera quando algo lhe anima o coração.
Um dia o Xarila aparece na horta de Dom Pedro e dá-lhe o
resto do dinheiro dos borregos.
Já não via no
Boa-tarde o mesmo sorriso e da conversa com ele travada notava-lhe, não só uma
tristeza como um desejo de abandonar aqueles sítios. Promete que voltará para
negociar o pluvial dos porcos, dizendo que talvez lhe possa arranjar novamente
para pastor.
O Boa-tarde, embora não mostrasse muito entusiasmo,
alegrou-se um pouco, por poder vir a trabalhar perto do sítio onde o pai
nascera.
Sentia por aqueles sítios uma atração esquisita, que
aumentava com a idade e parecia tornar-se mórbida.
Um dia tem a surpresa da visita do padrinho.
O pagamento das dívidas
O sobrinho do Zé
Godinho sentindo algum receio do pagamento da dívida pelo Boa-tarde, vai com o tio
ao monte de Dom Pedro para falar com este.
Lá chegados o sitiado abrindo o sorriso que o notabilizara
e, por ter achado o momento de saldar a dívida, sobe a uma azinheira, tira para
sanar aquele empréstimo, o dinheiro que tinha escondido num toco da árvore,
dizendo com uma satisfação que rapidamente se esfumou.
- Sei porque vieram
cá. Já tenho o dinheiro guardado há algum tempo. Ando com medo de sair daqui, talvez não mais
volte à aldeia e a Terena.
A frase comoveu e
intrigou os dois visitantes.
Em todas as recolhas
que fizemos não se constou que o Boa-tarde ficasse a dever fosse o que fosse a
alguém.
O relato que a agora vos dou conhecimento é comovente.
O nosso protagonista viu-se um dia necessitado de dinheiro e
resolveu pedir cinco mil escudos a um familiar. Este pensando que o dinheiro
seria gasto com mulheres, apenas lhe emprestou três mil, advertindo-o se o
gastasse com as prostitutas não mais lhe falaria.
Com os olhos humedecidos aceitou o dinheiro, dizendo,
categoricamente, que todo o dinheiro que pedira emprestado nunca seria gasto
com mulheres, nem mal gasto.
Ao fim de um mês e dois dias envia os três mil escudos por
um portador.
As acusações contra o do Boa-tarde
Na herdade do Baldio vemos o nosso protagonista novamente em
pastor de um rebanho de setenta ovelhas.
Tinha junto ao bardo uma pequena casa com chaminé, que lhe
servia também de quarto.
Desde que saíra de casa dos pais e do monte do tio Godinho
nunca tivera tanto conforto, apesar de se sentir bem quando estava dentro da choça
que o tio Chico Claré lhe oferecera.
Já tinha ensinado dois cães a caçar que lhe faziam companhia
e lhe apanhavam coelhos auxiliando-o na guarda do gado, além disso ainda
conservava a burra que o transportava quando ia buscar os víveres para a
semana.
Todos os domingos se deslocava ao mercado de Borba.
Noticias dele chegadas às Hortinhas eram portadoras da sua
felicidade, mas quem com ele convivesse mais de perto e lhe ganhasse a
confiança notar-lhe-ia uma interior e escondida tristeza, que parecia adivinhar
um fim trágico.
De bondoso que era nunca combinara soldada com os patrões,
dando-lhe estes praticamente o que queriam, além da comida.
Trinta borregos foram roubados do rebanho que estava à
guarda do Boa-tarde, sem que este o conseguisse evitar. Desgostoso e acusado de
negligência, abandona a herdade, levando com ele o pluvial.
Constrói uma cabana nos olivais, entre Bencatel e Borba e
anda de mal andar com as suas ovelhas.
Alguns proprietários perseguem-no outros toleram-no, o que
faz aumentar a sua tristeza. O dono do
rebanho faz queixa do Boa-tarde, à guarda nacional republicana de vila Viçosa
alegando, não só conivência no roubo dos borregos mas também de negação de uma
dívida de dezoito mil escudos emprestados ao Boa-tarde.
Nunca o nosso protagonista se vira confrontado com tamanha acusação,
considerada por ele a maior afronta da sua vida.
Nem a ida a Elvas, que o deixou sem dinheiro o desmoralizou
tanto como estas acusações.
Nunca ninguém o tinha considerado ladrão como agora este
patrão. Tinha confiado nele como nos outros e não combinou a soldada.
Despedido e sem acerto de contas está ferido, não
fisicamente mas na sua alma, no sentimento que o Homem tem de melhor, o seu
caracter, a sua honestidade.
Pensou em pedir socorro e lembrou-se do pai. - Se fosse vivo defender-me-ia.
Pensou no padrinho que o socorrera nalgumas situações, mas
nesta era diferente.
Era acusado de roubo e também ele poderia não o acreditar,
além disse também era lavrador. E por aqui se ficou.
Todos estes pensamentos surgiam, em desmedida avalanche, na
cabeça do Boa-tarde, acrescidos, se decidisse ir falar com o padrinho teria que
passar por Terena e aí poderia encontrar alguém que já soubesse do caso, que junto
ao ato de Elvas daria azo a severas criticas.
Estas acusações atormentaram-no dia e noite. Dir-se-ia que
estava num beco sem saída.
A estranha morte do Boa-tarde
Pensou, pensou muito, e um dia, de madrugada, ainda a
coberto da noite tomou coragem e meteu-se a caminho de Terena, acompanhado dos
seus dois cães, que ele considerava os seus únicos amigos.
Ia disposto a falar com o Matassa ou com Estroino, talvez
eles com mais experiência de vida o auxiliassem.
Para trás ficou a sua choça e o que ainda restava das suas
adoráveis ovelhas. Pensou na burra e conformou-se julgando que esta era capaz
de se governar sozinha.
Um desbobinar de recordações acompanhava-o, fazendo-o reflectir
e que ia minando cada vez mais, o seu abalado e atormentado espírito.
Sentiu sede, só sede porque a fome há muito que o não
atormentava.
Aqui e ali tropeçava caindo muitas vezes. Os cães
compreendendo o estado débil do dono não se afastavam dele, esperando sempre
que ele se erguesse.
O Boa-tarde comove-se ao sentir a compreensão dos animais,
únicos seres que no seu fraco e já doentio discernimento estavam com ele.
Pendurado do seu cinto está o seu inseparável cocho de
cortiça feito, que um dia na Festa dos Prazeres, a maior romaria do Concelho, o
Parrança, habilidoso artesão de Terena lhe oferecera.
Chegado à Fonte das Freiras tenta, sem conseguir, tirar o
cocho do cinto. A serena água do tanque reflecte a sua imagem, contrastando com
a turbulenta agitação que ia no interior do Boa-tarde. Este parece ver-se a um
espelho, onde raramente se via. No seu atormentado estado psíquico não se
reconhece. Vê a imagem multiplicar-se, com gestos acusadores.
- Foste tu, Boa-tarde, foste tu.
O nosso homem tenta
fugir daquele lugar mentiroso e maldito.
Fugir daquelas
pessoas que o estavam a acusar sem procurarem o conhecimento da verdade,
daqueles juízes que sem conhecimento de causa, arrastados por interesses
individuais ou partidários, ditam a sua sentença condenando os inocentes. - Não, - grita o Boa-tarde.
Nunca aquele tranquilo vale foi agitado com tamanho
estrondo. Não houve em nenhum inverno, que se tivesse conhecimento, ribombar de trovão que o superasse.
O eco fez dançar as telhas do Monte do Pomarinho.
O Boa-tarde, movido por uma força que julgou divina, parte
em correria desenfreada, perante a surpresa dos seus fiéis companheiros, os
cães, que atónicos tardiamente arrancaram no seu encalce.
Chegados ao olival do Mariano Albardeiro deparam com o dono
pendurado, por um arame de fardo de palha, de uma das pernadas mestra da única
oliveira cordovil.
Firmes nas suas patas traseiras esperam, por momentos, a
queda do Boa-tarde, mas logo verificaram essa impossibilidade.
O mais rápido parte, em ladrar desesperante, a caminho do
monte onde o Manuel do Pomarinho, já na rua tenta perceber aquela agitação. O
cão ao avistá-lo aumenta e modifica o seu ladrar, tentando dar a conhecer a sua
aflição, com pequenas corridas de vai vem, logo compreendidas pelo caseiro.
Contou este mais tarde que encontrou no Boa-tarde o mesmo
sorriso de sempre, de menino bondoso, gentil e respeitador.
Murmúrios de incrédula indignação correram todo o concelho
de Alandroal, duplamente avalizados pela quantia de dinheiro, vinte e oito mil
e quinhentos escudos, encontrados, após a sua morte, na carteira do Boa-tarde
e, pelo seu elevado grau de seriedade.
Os receios da dona Aldonça Godinho, a madrinha, assim como a
preocupação do seu pai, o Véstias de Borba, concretizaram-se.
A sua morte foi uma surpresa, pois ninguém com quem trocámos
impressões a seu respeito se convenceu que o Boa-tarde, pela sua vivência de
homem honesto e bondoso, embora sem preocupações, fosse capaz de semelhante
ato.
A verdade da sua morte morreu com ele.
Das pesquisas que fizemos em Bencatel, tivemos a sorte de
encontrar uma pessoa que com ele trabalhou na herdade do Baldio, que nos
confirmou tudo aquilo que já sabíamos, acrescentando que o Boa-tarde era boa
pessoa e nunca exigia nada dos patrões, - trabalhava
só pela comida, - disse-nos, com uma voz comovente e saudosa de quem
recorda um homem bom e um excelente companheiro.
Para nós limitamo-nos a relatar a sua história e a
homenagear este bondoso, sério e despretensioso homem, sempre sorridente, amigo
do seu amigo, que viveu à sua maneira, sem exigências de espécie alguma.
Concluímos pelos testemunhos que alcançámos que o Boa-tarde
viveu ao sabor do imprevisto, da aventura e da Natureza, tirando desta a maior
parte do seu parco sustento, que nos levou a compará-lo a um homem sem rumo, um
feliz errante, não merecedor daquele fim.
Helder Salgado.
14-04-2013.
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