Uma ficção do nosso colaborador Hélder Salgado.
Nesta
ficção o Hélder Salgado tenta demonstrar-nos o que se passa actualmente na
administração nacional e porque não na administração local.
São Gens
O
único sujeito
A festa tinha decorrido no lugar mais
bonito do concelho, quiçá do Alentejo e no imaginário de muita gente, que se
dizia viajada, no lugar mais bonito de Portugal, outros ainda, fazendo alardes
da sua experiência de viandantes pronunciavam-se pela Europa, outros
denunciadores de certa alarvidade, diziam sem nenhuma propriedade, que aquele
lugar era o mais bonito do planeta Terra.
Certo é que o rio do Prazer nunca deixara de
correr. Corria tanto de Verão como de Inverno e o seu caudal não diminuía de
intensidade nas estações intermédias.
O local era um verdadeiro paraíso por
desvendar.
São Gens, o santo chegara ali novinho
deixado pelos pais, que logo se aperceberam que o filho sobrevivia, naquele
sítio, sozinho.
Entre duas altas rochas, no cimo da ravina
mais alta, construíram-lhe uma choupana, cuja cobertura de esteva e piorno não
deixava entrar a água da chuva.
São Gens, curioso, desceu a ravina e
chapinhou-se com a água do rio do Prazer.
Sentiu uma estranha sensação e repetiu o
gesto. Por instinto ou por magia mergulhou nas águas que apresentavam uma
limpidez cristalina e sem nenhuma ondulação.
Mansa era aquela água que seduziu, como a
donzela mais bonita e pura que alguém pudesse imaginar o menino São Gens, que
sentiu pela primeira vez um calor humano diferente do materno.
Quando saiu da água, o jovem São Gens tinha
à sua disposição um hábito que lhe chegava até aos pés e uma corda para apertar
a vestimenta.
Sentiu-se iluminado.
Mirou-se e remirou-se.
- Sou um frade - gritou em voz alta.
O seu grito foi retornado, em eco, pelas
ravinas sete vezes, que ele ouviu com enorme espanto, admiração e surpresa.
- Frade? E porque não santo? -
Interrogou-se.
Que diferença faria a São Gens ser frade ou
santo? Estando sozinho naquele paraíso terreste, até podia ser Deus.
Certo é que sentiu algo estranho, quando se
banhou no rio e também o aparecimento da roupa, era mistério que ele não
conseguia desvendar.
Interrogou-se mas não refletiu.
A sua idade ainda não lhe permitia grandes
pensamentos, nem para isso tinha tempo, pois estava ainda a reconhecer o local.
Tentou descobrir a nascente e embora dela
muito se aproxima-se não consegui chegar à sua origem.
Bombos bravos, torcazes e seixas,
acompanhavam-no tentando afastar as pegas e os picanços. Curiosamente não se
incomodavam com os pintassilgos, verdilhões ou com os rouxinóis, parecendo quer
que estes cantassem para o São Gens, agora santo.
O jovem santo apercebia-se deste encanto e,
mais se admirava ao descer o rio, com o contínuo coaxar das rãs e o cantar dos
sapos.
Os choupos e as acácias tentavam dobrar-se
para o cumprimentar e nem as silvas e os carapetos o picavam. O rosmaninho e os
alandros intensificavam os seus cheiros, quando ele passava.
São Gens vivia um sonho encantador.
Não tinha preocupações com os alimentos pois
o vale era muito fértil em fruta de todas as espécies.
Nesta espécie de paraíso foi crescendo São
Gens.
Há sempre um dia
Um dia estando o santo na sua choupana, lá
no alto da ravina viu chegar ao rio um grupo de ciganos.
Acamparam na margem esquerda, a margem menos
agreste e arborizada e dirigiram-se à água para fazerem alguma higiene. Ao
tocarem nesta, as raparigas corriam para o acampamento para se verem ao espelho
e vestiram roupa nova, os homens surpreendidos conversavam uns com outros.
Nada disto passou despercebido a São Gens.
Agora com mais idade e possuidor de um
grande poder de reflexão, tirou todas as dúvidas que no seu espirito pairavam,
quanto ao poder daquela água.
O rio era milagreiro.
Como atacados por algo que passou
despercebido ao santo, os ciganos retiraram-se.
São Gens entristeceu-se. Tinha com a chegada
dos ciganos a possibilidade de conviver, de conversar e de trocar ideias acerca
daquele maravilhoso local, além disso, no seu íntimo de jovem agradara-lhe ver
as raparigas ciganas cuja garridice dos trajos o impressionara.
O nascimento de uma povoação
Passados oito dias da saída dos ciganos, São
Gens vê chegar uma enorme multidão de gente. Observou-a atentamente e verificou
que eram ciganos.
Deduziu e não se enganara que os primeiros
foram chamar os seus irmãos de raça para ali permanecerem. Verificou que se
organizaram e que iriam viver em harmonia.
Alguns dias passados o santo tem nova
surpresa. Vê chegar pastores com os seus rebanhos. Depois os lavradores que
cultivam a terra, que se apresentava fértil. Oficiais de vários ofícios chegam
logo a seguir. São construídas casas, na margem esquerda do rio.
Comerciantes estabelecem-se e abrem-se
tabernas e, atrás de tudo isto, começa a levantar-se a corrupção e a agiotagem.
Vagabundos e mendigos não tardam a chegar
Curiosamente a margem direita do rio é
apenas ocupada por poetas, escritores, pintores e periodicamente por estudantes.
Aqui as artes parecem querer impor a lei da sensibilidade humana, com
manifestações íntimas do pensamento cujas ideias tentavam passar para a outra
margem.
A margem esquerda insensata segue a marcha
que ela julga progressista, ignorando os sinais e os conselhos da margem das
artes.
A inquietação do santo
São Gens agora homem e senhor de um sempre
crescente poder de reflexão, pensa que algo terá que ser feito, de modo a
ordenar esta contínua avalanche de pessoas.
- Tenho a certeza que sou frade mas santo....?
- Pensava São Gens.
Esta interrogação levou-o a pensar algum
tempo e a retardar a sua decisão.
Começaram as desordens e os roubos.
As injúrias entre vizinhos eram frequentes e
aumentava de intensidade entre os ciganos e a restante população, parecendo
querer abreviar a decisão do santo, que finalmente se decide.
- Santo
ou não vou impor a minha vontade - pensou um dia, quando os conflitos se
agudizaram.
Tinha a certeza que alcançaria bons
resultados, tanto mais que quando ele descia a ravina para apanhar frutos, as
pessoas que encontrava ofereciam-lhe comida, num ato de louvável respeito, mas
que ele sempre rejeitava.
Gente nova e mais velha já o tinha procurado
para se aconselharem levados pelo seu hábito de frade e pela sabedoria que
demonstrava nos aconselhamentos.
Na reflexão que fazia a razão estava sempre
do seu lado. Decidiu o dia o local e a hora para tão delicado e ao mesmo tempo
arriscado ato.
Era dia de descanso na comunidade.
Escolheu, no meio da ravina, a rocha mais
alta e ali se prostrou logo de manhã.
Curiosos de todas as classes sociais
abeiraram-se dele, alguns mais curiosos perguntavam-lhe porque estava ali, ao
que o santo respondia apenas com um gesto de espera.
Quando julgou ter à sua beira o número
suficiente de pessoas decidiu falar.
- Vamos criar um Concelho, estão de acordo?
- Perguntou com uma voz forte, alta e decidida.
A multidão sentiu algo de estranho naquela
voz, como se fosse um elo comunicativo e simultâneo entre todos.
- Estamos – Gritou a multidão em uníssimo.
- O rio Prazer é dividido em quatro cantões,
Norte. Sul, Este e Oeste. A margem direita fica para as artes e o restante
território do rio fica para o resto do Povo - Ordenou o santo.
Os artistas rejubilando de alegria
agradeceram, seguidos da restante população, excecionando os construtores que
já há muito estudavam a maneira de se apropriarem da margem direita.
Logo começaram a estudar a maneira de
convencer o santo a deixá-los construir naquela margem.
Um dia quando São Gens resolvia uns
conflitos, construíram-lhe uma pequena casa, com duas divisões, cozinha e
quarto. Uns ainda pensaram desmanchar-lhe a choupana, mas receosos não o
fizeram.
Pensavam que o São Gens iria para a nova
casa, uma vez que não fazia sentido, sendo ele o dirigente máximo daquela
comunidade, morar numa choupana.
São Gens quando chegou ao cimo da ravina e
viu a casa, não se surpreendeu e logo pensou ser aquele simples edifício a sede
do Concelho.
Já selecionara algumas pessoas para a
feitura das leis, que teriam como base os bons costumes, por ele alcançados nas
suas visitas à povoação.
Nesta verificara que era necessário
construir ruas, lavabos e lavadouros e, até uma igreja se a população a
pedisse. Nunca a construiria por sua livre vontade, pois ele vivera sempre na
sua adorável choupana e era feliz.
Reunidos os conselheiros decidiram cobrar
impostos para estas benfeitorias. Aqui começaram os dissabores e a
contestação.
Apesar do rio do Prazer continuar com o
seu caudal de fertilidade e a vida da povoação não conhecer dificuldades,
acharam os impostos elevados.
Os ciganos decidiram não pagar. Os
vagabundos agrupando-se com os mendigos pilhavam o que podiam. Assim nasceu a
guarda e a polícia.
São Gens sente-se enfraquecer
Depois de passar uma juventude paradisíaca e
despreocupada, São Gens vê-se agora cheio de dificuldades e problemas para
governar o seu Povo.
Uma nova ideia lhe aflorou o cérebro -
implementar a democracia.
Apresentou a ideia aos conselheiros que em
unanimidade concordaram.
A mesma rocha em que antes estivera serviu
de palco para o santo, que rodeado pelos conselheiros falou ao Povo.
- Queremos - Gritou em coro a população,
para logo impor.
- São Gens fica como presidente - Pela primeira vez o santo comoveu-se sentindo algo
misterioso e humano que o conduziria à desgraça. Sentia uma espécie de
arrependimento por se julgar santo e de impor a sua vontade, embora a achasse
útil e necessária. Os acontecimentos davam-lhe razão e a maior prova é que o
queriam para presidente.
Tinha ainda outra preocupação, não conseguia
evitar os olhares de duas raparigas que pareciam disputá-lo entre si e lhe
recordavam a mesma sensação, sempre que tomava banho no rio.
A democracia é instituída e logo surgiram as
lutas de classe.
O rio continuava abundante e milagroso ia
alimentando aquelas lutas.
Com estas
surgem também as lutas pelo poder.
Caem governos após governos.
São Gens começa a ser ultrapassado e o seu
poder começa a escoar-se ao mesmo tempo que o rio começa a ser menos abundante.
Quando São Gens desce ao rio para colher
frutos para se alimentar, este já escasseiam.
Os maus negócios e a corrupção crescem
impunes.
As leis são demasiado brandas e
permissíveis, onde a administração se deixa corromper.
São Gens sente, cada dia que passa, que o
paraíso do rio do Prazer, se aproxima do fim e, apesar de todo o seu empenho e
esforço começa a sentir-se incapaz de dominar os acontecimentos, que se tornam
céleres em todas as áreas da governação.
Pedem-se empréstimos e lançam-se mais
impostos que asfixiam tudo e todos, num ciclo infernal e destrutivo.
O Concelho cai nas mãos dos credores, que
ditam a sua vontade.
O Povo agita-se e o rio enfraquece com ele.
Os poetas estão incapazes de cantar, os
escritores de escrever. Não há pintores que descrevam aquele desolador cenário.
As artes calam-se para sempre e a solo
começa a tornar-se estéril.
Os pastores vagueiam de herdade, em herdade
para alimentarem os seus rebanhos.
Ciganos e vagabundos, depois de pilharem o
que o podiam, debandam do rio. A população vai, gradualmente, em busca de
melhor vida abandonando o Concelho.
A estrutura administrativa é abalada pela
corrupção e suborno, rindo-se perante a impunidade das leis.
São Gens já não se julga santo mas um
simples frade que se penitencia a todo o momento.
O rio do Prazer secara.
A sua milagrosa água evapora-se por
encanto, tal como o menino São Gens dera com ela ao chegar.
O frade arrastando-se, dirige-se a todo o
custo para a nascente, numa tentativa de salvar aquela gente, pessoas que
sempre se confiaram nele e que ainda o adoravam.
Era o que lhe restava fazer, para se livrar
do peso que cada vez mais lhe atormentava a consciência.
Entra agora sem nenhuma dificuldade na
nascente. Os pombos já não o acompanham e as rãs e os sapos há muito tempo que
perderam o som.
Está seca.
Nenhuma humidade transparece.
O frade interroga-se com o aspeto desolador
da nascente.
- Porquê? - Grita São Gens desesperado.
O eco não retornou a sua voz.
Uma voz rouca e cavernosa soou, dos confins
da terra, aos ouvidos do frade.
- Porque tu São Gens te envaideceste ao julgaste
santo. Porque tu, São Gens, deverias ter atuado mais cedo e não atuaste. As
tuas leis, São Gens, foram brandas e permissíveis à ganância. Agora é tarde o
rio do Prazer morreu.
- Não - Gritou São Gens num esforço para tentar calar aquela voz e ao mesmo
tempo justificar-se. Esforço que ele julgava não conseguir, esforço de raiva
por não ver reconhecido o seu trabalho, nem a dedicação a uma causa, que
julgava acertada e correta.
Tinha-se colocado, inteiramente, ao serviço
daquela população e agora encontra-se sozinho, tal como os pais o deixaram
naquele local, mas sem o paraíso do rio do Prazer. Maldisse o seu destino.
Não obtendo resposta atirou o cajado que se
apoiou para subir o rio, ao teto da gruta, que logo, pedra a pedra, se foi
desmoronando.
O frade não se importou, nem esboçou nenhum
esforço para fugir à derrocada.
São Gens foi o único sujeito a morrer na
festa do paraíso acabado do rio do Prazer.
Helder
Salgado.
25-11-2012.
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