Nota do Editor:
Desde há muito que o Hélder nos habituou a deixar neste “espaço” o seu testemunho em jeito de homenagem, a pessoas que “marcaram” a sua juventude ao mesmo tempo que se tornaram em personalidades que nunca procurando ser famosas, ficaram na memória de todos nós quer pelos seus actos, quer pelas suas “saídas”, quer pela sua bondade, ou pelos seus dotes.
Já aqui foram recordados, por intermédio do Hélder, o Catita Guiomar, o Dr. Galhardas, o Borrões, O Velho Godinho. O Zé Seabra, o Caritas, entre tantos outros.
Agora o Hélder proporciona-nos uma história digna de ombrear com tantas outras de Autores consagrados (Manuel da Fonseca, Alves Redol, Fernando Namora, entre outros)
Ao longo de várias semanas aqui vai ser recordada esta “personagem” que alem de outros dotes era exímio tocador de harmónica.
Assim se vai preservando (para memória futura) os usos e costumes da nossa gente.
O VELHO APERTA - A HISTÓRIA DE UM TOCADOR
Quando acabo de escrever o último texto fico sempre com uma sensação de vazio, julgando não me recordar de nova história.
Do “Bota cá licença” não sei como me apareceu na ideia.
Da “Morcela do Caritas”, foi no Fórum, quando, chegando já tarde, fui ouvir o Grupo de Portel, espectáculo de muito bom agrado, cuja locução soube transmitir para a plateia, a alegria que se vivia no palco.
Havia poucos lugares vagos e vendo três lugares vazios, procurei sentar-me sem incomodar. O mesmo procedimento teve a Bernarda Caritas, que sentando-se ao meu lado foi minha companheira até final do espectáculo.
Quando nos despedimos, num gesto impensado, disse-lhe - Vou escrever sobre a Morcela do Caritas - A Bernarda sorriu e cada um de nós foi ao seu destino.
Estamos em ambiente de música, dada pelo citado grupo, que teve a arte e o engenho de levar o Cante Alentejano além-fronteiras, (quem não se recorda do “Passarinho às quatro da Madrugada?”). Esta crónica irá decorrer no mesmo ambiente, com música dada, não por mim, mas pelo Tonho Aperta, que era tocador de harmónio.
O começo de um sonho
A popular e alegre aldeia de Montejuntos, foi berço do nosso protagonista.
Nesta simpática povoação irá decorrer esta história, que não sendo comum a qualquer pessoa, poderia ter sido a sua, a minha, a nossa, se decidíssemos correr riscos, se amassemos como o Tonho amou, se vencêssemos as metas que a vida nos ofereceu, se enfim fossemos um sonhador como o Tonho Aperta.
Eis o seu percurso.
Nascido de uma humilde e pobre família o Tonho soube com a sua capacidade de trabalho e elevado grau de respeito e seriedade, singrar na vida.
Não enriqueceu, nem isso, como afirmou algumas vezes, fora sua pretensão, apenas não queria olhar para “mãos alheias”.
Por imposição do pai, tirou a quarta classe, gesto que ele, quando se reconheceu como homem, bastante enaltecia.
- Se o meu pai não me obrigasse a tirar a quarta classe, hoje era mais burro do que a minha burra - chegou a dizer agradecendo deste modo ao pai.
Logo que saiu da escola o pai contratou-o para guarda de perus, no Aguilhão, tarefa que durava até ao Natal.
O então menino Aperta, não tinha “soldada”, vencia apenas a comida e dormida, tendo-lhe o lavrador dado quinze escudos, no fim da safra, valor correspondente ao preço de um peru de tamanho médio.
- Quinze escudos - murmurou o jovem inúmeras vezes, a caminho da sua casa em Montejuntos.
Pediu à mãe que lhe guardasse o dinheiro.
- Para que queres tu o dinheiro, não vês que faz falta cá em casa - disse a mãe determinada a gastar aquela pequena verba.
O rapaz entristeceu, baixou a cabeça e foi sentar-se a um canto da chaminé.
À noite, mais tarde, quando o pai chegou a casa viu-o com os cotovelos firmes nos joelhos, tapando a cara com as mãos.
- Que tens filho, estás doente? - perguntou surpreso o pai, que pouco antes o vira meter a mão direita no bolso das calças, a certificar-se que não tinha perdido o dinheiro, gesto que o pai traduziu de contentamento.
- Não pai, a mãe precisa do dinheiro, entreguei-lho - respondeu tentando não se mostrar triste, não conseguindo enganar o pai, que voltando-se para a mulher, disse, - Guarda o dinheiro do rapaz, talvez não nos venha a fazer falta.
O Tonho Aperta levantou a cabeça, sorriu para os pais e nada disse.
O sonho de comprar o harmónio começou com o dinheiro do peru, com os quinze escudos.
O primeiro olhar
Mais um Natal passado no Aguilhão e vemo-lo, em “escamél”, na Talaveira, depois já em carreiro, no monte do Roncão. Aqui contratado e a auferir duzentos e cinquenta escudo mensais.
O harmónio estava cada vez mais próximo do nosso homem.
O serviço como “escamél” era um serviço solto e todas as semanas ia buscar, ao moinho da Cinza, no carro de varais, quatro sacas de farinha para as cozeduras, que ele próprio ajudava a fazer.
Peneirava a farinha, amassava, ajudava a tender, enchia o forno de lenha e varria-o.
O jovem Tonho era um precioso auxiliar da tia Maria Berjano a encarregada desta labuta.
Numa das ocasiões em que se deslocou ao moinho encontrou lá a Bia Figueiras.
Já conhecia a rapariga e algumas vezes falara com ela, agora ali, com o barulho da água a galgar a parede do açude, com o cheiro da flor dos carapetos e o colorido rosáceo dos alandros, pareceu-lhe diferente, mais bonita.
Olharam um para o outro, falaram e sorriram, durante uns momentos.
Na despedida, quase por instinto, estenderam as mãos, fixaram o olhar um no outro parecendo selar um compromisso para toda a vida.
O nosso homem verificou que passar para Espanha era fácil, aliás já uma vez passara com o pai, pelo açude do moinho da Azenha de El-Rei, quando foi à festa à Cheles.
A ideia de passar contrabando começa a apoderar-se dele.
O Carnaval
Duas pretensões começaram a ocupar o cérebro, do Tonho Aperta.
Uma, a de puxar namoro à Bia Figueiras, outra, a de comprar o harmónio. Um dilema começa, também a afligi-lo, se comprasse o instrumento teria que tocar em qualquer lado e assim não tinha tempo para a rapariga, pois apenas tinha o tempo da “gavela”, a manhã de domingo disponível.
O entusiasmo de ter o harmónio foi mais forte e ei-lo em Évora, na casa da Musica, a comprar o seu, hà muito desejado, instrumento.
- Sabe tocar - pergunta-lhe o vendedor.
O Tonho tentou não responder, mas não foi capaz e gaguejando disse - Não sei, mas compro-o na mesma.
Julgava ele que para tocar algo de jeito bastaria premir os botões e, por encanto, as músicas apareciam, Tinha até pensado que a primeira música que tocasse, seria um tango “Um tango à média luz”, que dedicaria à sua já considerada namorada, a Bia Figueiras.
Ao tentar tocar, já na aldeia, o som que obtinha não se assemelhava a nenhuma música.
Tenta uma, duas, três vezes e o resultado era sempre o mesmo, soava-lhe sempre mal.
- Que raio de instrumento é este? e já estava a pensar que fora enganado
O nosso homem recupera o discernimento e serenando pensou melhor.
- Hei-de aprender, ao menos assim já tenho tempo para puxar namoro à Bia, - conformou-se e pareceu-lhe que o acto de puxar namoro à Bia, era tarefa fácil e já ganha.
Decidiu ser Domingo de Carnaval o desfecho do projectado e esperado acontecimento.
Durante o dia, depois de muito bem aperaltado, para espanto da mãe e a tolerância alegre do pai, segui para a festa.
Procurou apanhar a rapariga sozinha e não consegui. - Depois de almoço talvez consiga chegar perto dela - e começou a admitir falar-lhe mesmo na frente de outras pessoas, fossem rapazes, raparigas, homens ou mulheres.
Já estava por tudo.
Em frente à taberna do tio Sabino e no meio dos festejos, surgiu a oportunidade.
Respirou fundo, deu um jeito na gravata e em passada firme, vai acerca-se da jovem.
Ia começar a dirigir-lhe a palavra quando ouve um chamamento, - Bia anda cá - era a mãe Figueiras que notando o vestido da filha desabotoado a chamava.
Com a mãe da rapariga por perto, o Tonho não se atreveu, novamente, a abeirar-se da Bia e logo, outro pensamento de conformidade dele se apodera - Ficará para o baile.
Este pensamento, talvez por ser a última oportunidade do dia de Carnaval, começou a deixá-lo um pouco inquieto. Deu voltas e voltas ao cérebro, na tentativa de descobrir a causa daquela, embora pequena, mas preocupante inquietação.
Não lhe parecia ser da rapariga, pois na troca de olhares via nela uma desejada aceitação, que os sorrisos e a despedida no moinho da Cinza avalizaram.
- Que será? - interrogava-se constantemente.
Mal comeu a refeição do jantar, o que foi admoestado pela mãe, e mais uma vez tolerado pelo pai.
O baile
O ímpeto e a determinação que até então tinha tido começaram a refrear e, o nosso homem, já no baile, esperou duas séries de três músicas, como observador.
À terceira decidiu ir buscar a rapariga, que dava “cabaços” a todos os rapazes, sintoma que ela estaria à espera que ele a fosse buscar.
Um estranho pensamento afluiu-lhe no cérebro.
- Não há duas sem três - não fez caso desse presságio e caminhou em direcção da rapariga.
O pedido para dançar foi uma delicada vénia de dobragem de corpo, que pela perfeição e estilo provocou a admiração da rapariga.
Ergueu-se e sorriu.
Ela levantando-se da cadeira vem ao seu encontro, com um largo sorriso e braços meios apertos parecendo dizer, estou aqui, estou à tua disposição.
De mãos dadas procuram o meio do baile para começar a dança.
Começam a dançar ou melhor tentam começar porque o Tonho, apesar do esforço da rapariga não acerta.
Tentam por algum tempo e as melhoras não apareciam, não conseguiam acertar nenhuma música.
Os outros pares começam a jogar-lhe piadas e a mãe Figueiras, irritada com aquele ambiente, grita para dentro do recinto do baile, - Deixa esse paspalhão, não vês que não sabe dançar - ainda não se tinha apercebido que a filha gostava do Tonho Aperta.
Este ruborizou, sentindo dentro de si a fúria de um animal ferido, por um chumbo de zagalote que nunca merecera.
Ah se aquela frase fosse a sós .....
Recuperando a calma e diz para a rapariga - Vamo-nos embora, um dia todos os que de nós, de nós não, de mim se riram hão-de admirar-me.
Aquelas palavras surgiram aos ouvidos da rapariga como uma ordem, à qual obedeceu. Também ela se sentia vexada com as galhofas dos rapazes e raparigas, algumas delas suas amigas.
Ao sair do recinto, o nosso Tonho encontra o seu moral de parelhas o tio Zé Mocho, que o acalma e o tranquiliza.
O Tonho ignorou o conselho do seu moral para aprender a dançar, ainda que fosse com um pau.
O rapaz chorou de raiva e a rapariga de desgosto.
Contrabandista por acaso
O rapaz tenta arranjar alguém que o ensinasse a tocar o seu harmónio. Ficara um pouco traumatizado com a questão do baile e decidiu ir encontrar um mestre fora da aldeia.
Meteu a albarda na burra, que entretanto comprara ao Zé Maia, o cigano que morava na aldeia das Lajes, em Santiago Maior.
Parou em Ferreira, na taberna do Tio Paulino, perguntou por um tocador de instrumentos de fole, mas a resposta obtida não o convenceu.
Parou em Faleiros, e dirigiu-se à taberna do Manuel Coxo. Este prazenteiro e espertalhão logo pensou em indicar-lhe o Silva, taberneiro de Terena.
- Esse homem indica-te o melhor mestre. - Em Terena e nas Hortinhas há muitos e bons acordeonistas - disse o Coxo na mira do Silva arranjar mais um contrabandista para a sua quadrilha. Agradava-lhe a cara e a corpulência do rapaz.
Chegado a Terena prende a burra à argola de ferro que estava espetada na parede para esse efeito. O Silva estava no momento a ler o jornal “O Século” de que era assinante, olhando por cima deste observa o nosso protagonista.
Ao entrar na taberna apresentou-se.
- Sou de Montejuntos, venho da parte do senhor Manuel Coxo, de Faleiros pedir-lhe uma informação.
O Silva olhou-o de alto abaixo, perguntou-lhe o que fazia, e se conhecia a raia.
- Como as minhas mãos - disse o rapaz.
- Sou amigo do Jaquim da Cinza, conhece-o - sim respondeu o rapaz.
- No mínimo temos contrabandista, - pensou o Silva.
Este tinha fama de revolucionário e suspeitava-se que auxiliava os guerrilheiros de Terena, que combatiam na guerra civil de Espanha, por isso, as suas cautelas redobravam na frente de qualquer desconhecido.
- Diga lá o quer - pergunta o Silva, sem mais demoras e rodeios, não fosse o rapaz levantar alguma suspeita.
O Silva estava consciente da desconfiança de algumas pessoas e só dava a conhecer as suas ideias, quando tinha plena confiança em alguém, e a certeza que esse alguém não atraiçoasse a causa, que ele julgava de todos até mesmo universal.
Certo é que a sua táctica resultara e, embora os guerrilheiros não fossem muitos, até então não tinha havido denúncia.
- Aconselho-te o Inácio Vitorino é sabedor e toca bem, podes deixar aqui a burra que eu tomo conta dela, - disse o Silva tentando agradar e ganhar a confiança do rapaz.
As aprendizagens
O Inácio Vitorino era uma pessoa muito bem vista na Vila e logo cedeu à pretensão do nosso homem.
- Vou tocar uma peça que tu conheces, repara para o movimento dos meus dedos. A música é muito conhecida, è a Rosinha dos Limões.
O rapaz ficou tão entusiasmado que logo, com os lábios começou a solfejar a música.
- Tens que fazer isso com os dedos, deixa os lábios descansados. Os da mão esquerda marcam o compasso e os da outra, a música. Olha como eu faço, - e assim começou a primeira lição, que se repetiu por três vezes.
O Mestre observava a gradual ligeireza com que o nosso Aperta, agora aprendiz de música, desemperrava os dedos.
- Temos tocador, - pensou ao mesmo tempo que lhe ordenou - Pega no harmónio.
O Aperta ou melhor o coração do Aperta apertou-se, receoso a má figura que poderia fazer.
Desde o dia que comprara o harmónio, em Évora, não mais tentara tocar, embora lhe fizesse uma festinha todos os dias.
- O Mestre Vitorino sorrindo disse-lhe - Não tenhas medo, rapaz. Já vi pelo mexer dos teus dedos que vais ser um bom acordeonista.
Estas palavras foram o suficiente para o rapaz acalmar, mas não o convenceram que seria um bom academista.
O certo é que o som do primeiro toque, por ele produzido, lhe soara muito diferente do que tinha conseguido em sua casa, nos Montes.
Sem que o Mestre o mandasse, começou novamente a tocar. Este mandou-o parar.
- Vamos devagar, não quero que cries vícios que mais tarde podem ser de difícil correcção, - aconselhou o Mestre.
- Vamos tocar ao mesmo tempo a mesma música, para notares onde te enganas - disse, ao mesmo tempo ordenando o Vitorino.
Ao fim da quarta vez o Mestre só fingia que tocava, tentando não o dar aperceber.
- Agora tocas sozinho, - Sozinho? - surpreende-se o rapaz.
- Sim, acabaste de o fazer agora, - ambos sorriram.
- A lição por hoje acabou. Só quero que não te esqueças do que aprendeste, - Juro que não - respondeu o nosso Tonho, denotando um enorme contentamento.
- Deixa lá isso, - foram as palavras do Mestre quando o jovem lhe perguntou pelo custo da lição.
Ao entrar na taberna do Silva ainda mexia os dedos.
- Bem, muito bem mesmo. O senhor Vitorino é um bom Mestre - disse estas palavras num tom de respeito e admiração, que alegraram o taberneiro.
Por detrás do balcão, esfregou as mãos de contente e pensou ser o momento certo de convidar o rapaz para contrabandista.
- Ambos somos amigos do Jaquim da Cinza, podias fazer parte da minha quadrilha de contrabandistas. - o rapaz não se surpreendeu e perguntou ao Silva os pormenores.
- Aceito - disse o rapaz, pensando, não só no dinheiro que daí lhe poderia vir, mas também na lição que queria dar aqueles que o vexaram e sobretudo à mãe da sua amada.
Partiu feliz para Faleiros direito à taberna do Manel Coxo, para agradecer aquelas duas oportunidades.
Ao vê-lo entrar, o Coxo fez o mesmo gesto com as mãos, que o Silva tinha feito.
Via com o regresso do Tonho uns escuditos de ganho. Ele arriscava o dinheiro e os outros, os contrabandistas o dinheiro, o trabalho e corriam o risco de serem presos, o que só em caos de muita reincidência sucedia.
O nosso homem partiu para casa acarinhando mais o harmónio do que a burra.
Não perdeu tempo e depois de trancar bem a janela do quarto, não o fazendo à porta, para não parecer mal aos pais, sobretudo ao pai que cada dia que passava se mostrava um verdadeiro companheiro, começou a tocar a Rosinha dos Limões.
Suou-lhe bem ao ouvido e aos ouvidos dos pais que, de surpresos, precipitaram-se para a porta do quarto.
Repetiu duas vezes e não se enganara.
A segunda aprendizagem.
Na madrugada de segunda-feira apresentou-se no Monte do Roncão para começo do trabalho.
O moral das parelhas o tio Zé Mocho perguntou-lhe - Então, já está mais calmo. Estava a ver que batias na mulher. Tudo por não teres seguido o meu conselho.
O tio Mocho tinha aprendido a dançar com o pau e ainda o guardava. Devia ao pau, o seu primeiro parceiro de dança, esta aprendizagem e daí o convite para entrar em duas contradanças e o agora pertencer, de direito próprio, à organização da Festa Santa Cruz.
Devia todo o seu carisma a um simples pau de azinho, embora arranjado e envernizado.
Tudo isto contou ao jovem Aperta, tentando que ele percorresse o mesmo caminho, o seu caminho.
O Tonho concordou com o seu moral de parelhas.
O primeiro carregamento de café
A taberna do Coxo de Faleiros, componha-se de um pequeno compartimento, com porta e uma pequena janela.
Os contrabandistas eram atendidos, sempre de noite, pela janela.
- Quantos quilos querem? - perguntava o taberneiro - Dá-me tantos escudos ou tantas pesetas de café - a carga dependia do dinheiro.
Todas as quartas-feiras se repetia este acto.
Depois de algumas cargas e do muito sofrimento que ele, Tonho, só superava pensando na rapariga e na desforra
O nosso homem começou a pensar que seria mais fácil e mais vantajoso, ir buscar uma carga com a burra e depois passá-la para a Espanha.
Aproveitaria a ida a Terena e de caminho carregaria.
Teria para isso arranjar alforges próprios, que deixassem passar o mínimo cheiro possível, pois os pacotes de quilo de café em grão, de marca “Camelo” deitavam muito cheiro e isso era um factor de denúncia e, ao mesmo tempo de receio de ser assaltado no regresso a Montejuntos, com a carga de café. Este era o maior risco.
Falou com o moleiro e o taberneiro de Faleiros e viu nestes, condescendência. Faltava falar com o Silva o que sucedeu no domingo seguinte. Este pensou no assunto e concordou. A sua discordância poderia sair-lhe cara, pois sabia da relação que o rapaz tinha com o cabo Novo, granjeada após o incidente do baile, e do à vontade com que a guarda-fiscal entrava no monte do Roncão, onde o Tonho trabalhava.
Durante o Outono e o Inverno seguintes, em dias não anunciados, aparecia em Faleiros.
Trinta e cinco quilos de café em pacotes eram transportados na burra do nosso Aperta. No Verão e na Primavera as cargas eram menos frequentes, porque o risco de ser visto era muito maior.
No fim de cinco meses terminou a aprendizagem da música.
Dominava o harmónio a belo prazer e o seu reportório compunha-se de trinta e três músicas, as mesmas que o mestre Vitorino sabia.
A compra de casa
Ao fim de quatro anos o nosso homem tinha um razoável pé-de-meia.
Aconselhou-se com o pai e comprou, aceitando letras durante três anos, a casa ao Manuel Padilha, Tinha um bom quintal e assim poderia fazer a sua horta e ter uma cabra, para quando casasse e tivesse filhos, ter leite.
Este acto foi um estrondo em Montejuntos.
Um rapaz acabado de fazer dezanove anos ter uma casa? Era a admiração de todo o povo e foi também a do cabo Novo, que não se contendo indagou o rapaz,
- Como conseguiste arranjar dinheiro para a compra da casa? - disse sorrindo para o rapaz. Este respondeu também sorrindo, - Descanse meu cabo, que não foi com dinheiro roubado, - ambos intensificaram os sorrisos, tendo o cabo passado a mão direita pela cabeça do nosso protagonista, gesto que ele entendeu de continuidade para contrabandear.
A mãe Figueiras começa, embora controlando, a consentir o namoro.
O Tonho Aperta começa a respirar um pouco de felicidade.
A estreia como tocador
Já há muito tempo que o jovem tocava de janela aberta.
O som do seu harmónio fazia parar os transeuntes.
A mocidade dos Montes adorava ouvi-lo e até a Bia, a sua Bia Figueiras, às escondidas da mãe lá aparecia.
Naquele domingo o Zé Serrano convidou-o para tocar na sua taberna, no domingo seguinte toca na taberna do Sabino.
É ouvido em Cabeça de Carneiro, Santiago Maior.
Toca na sociedade em Terena, onde o seu mestre, o senhor Inácio Vitorino, não consegue conter as lágrimas.
O ponto por ele julgado o mais alto das suas actuações, foi na esplanada da sua sede de Concelho, o Alandroal, onde esteve o Presidente da Câmara.
Seguindo os conselhos do seu moral de parelhas, foi aceite para a realização da Festa de Santa Cruz.
A popular Festa da Santa Cruz
Em Montejuntos, Cabeça de Carneiro, na aldeia da Venda e nas Hortinhas realizavam-se estes festejos.
Muitas pessoas defendendo a origem da Festa, afirmavam a sua primeira realização em Cabeça de Carneiro, outras em Montejuntos e só mais tarde, na aldeia da Venda e nas Hortinhas.
Em Montejuntos a Festa tinha dia certo, três de Maio, dia da invenção da Santa Cruz.
O que releva neste ano e em muitos que se seguiram foi o desempenho do nosso jovem Aperta. O seu entusiasmo foi a admiração de muita gente, até da família da rapariga, cuja mãe começou a sentir uma forte admiração pelo rapaz.
Depois do trabalho e durante o serão, à luz do candeeiro a petróleo e da candeia de azeite, fazia em casa os recortes em papel e em prata, auxiliado pelo pai e pela mãe.
No sábado à tarde pediu dispensa ao moral das parelhas e ao patrão, e foi auxiliar na decoração da casa onde saía a Madalena, que seria interpretada pela Bia Figueiras.
Teve oportunidade de falar com ela durante algum tempo, muito embora a conversa tivesse sido quase só respeitante aos festejos.
Assistiu a pedido da estreante Bia, que iria pela primeira vez, representar a Maria Madalena, com alguma condescendência das mulheres mais velhas, ao ensaio da rapariga.
O Cante nada lhe dizia e até lhe feria os ouvidos, se não fora a Bia a interprete ter-se-ia indo embora.
A sua atenção focou-se no desempenho e no entusiasmo da moça. Observou-lhe o corpo, maravilhoso e saudável, de carnes soltas, apetitosas.
Tentou fixá-la no olhar nas não conseguiu. Queria deste modo e só com olhar, dizer-lhe quanto a amava e quanto bem lhe queria.
Pensou no baile e conformou-se.
O baile da Festa
Este baile foi o segundo baile que o nosso Tonho tomou parte
À entrada trocou algumas impressões com o Zé Mocho e nesse momento viu passar a Bia com a mãe.
Falaram um pouco, tendo ele ficado ainda por algum tempo, a falar com o seu moral de parelhas, agora um grande amigo.
Começa o baile.
Um acordeonista de renome abrilhantava a dança.
O jovem Aperta não ligou à música, concentrava-se só no modo como havia de vingar-se.
Com a mesma postura que tinha demonstrado no Carnaval, dirigiu-se para o recinto do baile.
Esperou as mesmas séries de música, depois com a mesma vénia convidou Bia para dançar. Também esta procurou manter a mesma postura.
Os rapazes que outrora o tinham vexado interrogavam-se pelo estranho comportamento do Tonho e da Bia, não lhe parecendo adequado para quem já namorava.
A mãe Figueiras era a que aparentava mais preocupação, não encontrando também explicação para o procedimento da filha e do namorado.
A música começa.
O casal dança primorosamente, ela rodopia pressa pela mão dele, afastam-se, unem-se, tocam com a cara um no outro, apertam-se, alargam-se e assim vão chamando atenção de todos os presentes.
Até as raparigas e rapazes espanhóis se surpreenderam.
Terminada a série e ele ordena - Vamo-nos embora, já todos nos admiraram.
Estavam assim de uma forma diferente de todas, a fazer pensar os presentes, consuma a vingança do Tonho Aperta.
“Os descantes”
A festa continua em casa do Tonho Aperta que para o efeito tinha pedido aos pais.
As filhas do Jaquim da Cinza e alguns moços e moças espanhóis tinham sido convidados pelo rapaz.
Comeram, dançaram, e até ouve sapateado e castanholas sevilhanas.
Foi uma confraternização nunca vista em Montejuntos, em que a mãe da Bia foi, perante a rapidez dos acontecimentos e arrastada pela filha e o namorado, forçada a assistir
A mãe do Tonho começou a modificar o seu comportamento para com o filho. Começou a ver nele um homem digno, respeitador, trabalhador e muito poupado.
Ao vê-lo namorar com a Bia Figueiras, de quem sempre muito gostara, perdeu todo o poder que exercia sobre o rapaz.
Nunca os dois namorados tinham estado tanto tempo juntos e dançado tanto, embora a dança tivesse pequenos intervalos para dar lugar a novo verso, em cantigas improvisadas pelos dançantes.
Esta dança não permitia que os pares parassem, embora dançassem a sós, altura em que o rapaz ou a rapariga cantava a desgarrada, verso improvisado e intencional, quase sempre a revelar o amor ou o desprezo a quem a quadra era dirigida. Acabada de cantar começavam, novamente, agora agarrados a dançar e a cantar a mesma quadra
A Zefa Potra, em tom de picardia, dirigiu esta quadra ao Manel Moreira, o melhor improvisador de versos daquele tempo.
Vamos, também entrar na roda e ouçamo-la.
“Com a tua gravada aos éses
À roda sobre dourada
Tu és parvo, não conheces
Que eu de ti não gosto nada”
Agarrem os seus pares e vamos dançar, repetindo a quadra.
A resposta, ao “consoante” do Moreira, não se fez esperar.
Com ar altivo e sorridente olhou para a rapariga e versou.
Dediquem-lhe, por favor, a mesma atenção.
“Eu sou parvo não conheço
Que de mim não gosta nada?
Moça mais linda mereço
E sem ser esgrouviada”
E era assim em animação mordaz, mas de salutar convivência, se dançava e cantava nos “descantes”.
O nosso homem só não se saturou daquela dança porque tinha a Bia com ele.
Pensou em começar a tocar o “Tango à média luz”, que ele ouvira na feira de Agosto, em Vila Viçosa à então famosa acordeonista Eugénia Lima, e agora já o tocava, mas para isso tinha que deixar a Bia e esta podia dançar com outro, acto que ele não tolerava.
Começaram a pedir-lhe e ele a resistir, a não querer tocar.
A Bia Figueiras puxando-o fê-lo sair da roda e pedindo-lhe para tocar disse, - Ficarei ao pé de ti, não danço.
O Tonho ruborizou atrapalhado e de semblante carregado ia falar, mas ela astuta, não lho permite dando-lhe um beijo na face.
Um beijo na frente de tanta gente, dos pais dele e da mãe dela era a melhor prova de amor que ela até então lhe dera.
Se alguma dúvida tivesse ficaria, com aquele acto, desvanecida.
A rapariga vai buscar um estrado e uma cadeira e ele foi buscar o harmónio.
Depois do Tonho Aperta se sentar, ela dando dois passos em frente, anuncia.
- Caros amigos e amigas, o melhor tocador das redondezas vai abrilhantar o nosso baile, vai tocar, exclusivamente, para vós.
A rapariga surpreende todos e o jovem Aperta, ficou encantado com a espontaneidade da namorada.
- Vamos começar pela bonita música a “Rosinha dos Limões” - completou.
Foi um completo delírio, e aumentou quando a Bia foi buscar a mãe para dançar.
O baile acabou alta madrugada.
Nos outros anos seguintes, no dia três de Maio, no dia da Festa Santa Cruz os acontecimentos repetiram-se, com o nosso homem a envaidecer-se com a Bia Figueiras, até hoje a melhor intérprete de Maria Madalena.
O casamento
O pai sempre teve uma grande admiração pelo filho, à medida que ele fora crescendo a admiração aumentava.
Agora, pelo excelente companheirismo reinante entre os dois, o filho confidenciava-lhe os seus problemas.
Tinha já vinte e quatro anos e por vezes abordava com a Bia os projectos para o casamento, mas aqui hesitava, sem contudo o dar a conhecer à rapariga.
Já tinha casa embora só mobilada no essencial. Isto não o incomodava.
- O melhor é agarrar nela e trazê-la para casa, - pensou algumas vezes.
Mas este pensamento era logo ofuscado por outro; se ela não quiser e se ela se zangar. Esta hesitação começou a atormentá-lo e levou-o a auscultar o pai, que melhor do que ninguém lhe daria o conselho adequado
- Não, não quero que me dês o mesmo desgosto que eu dei ao teu avô - respondeu o pai com um modo antes nunca visto pelo filho. Este apercebeu-se que se consumasse o acto de se amigar com a rapariga perderia a amizade do pai.
No ano seguinte, ele com vinte cinco anos e ela com vinte e quatro, no dia da Festa da Santa Cruz casaram.
Um casamento simples, sem cerimónias mas onde não faltou alegria, a dança e a música.
O casal, Tonho e Bia, muito embora ambos auxiliassem nos festejos vindouros, aquela não mais personalizou a Maria Madalena.
O desencanto
Durante dez anos a felicidade foi sentimento reinante e orientador na vida deste casal.
A casa que o Tonho Aperta comprara tinha um grande quintal. O galinheiro, amplo dava para albergar a criação e um casal de pombos brancos que ele oferecera à Bia, ainda em solteiros. No chiqueiro além do porco tinham uma cabra, para abundância de leite. Palheiro e cabana para a burra e ainda sobejava terra para uma pequena horta e árvores de fruto.
Um paraíso comentava, não só as amigas, mas também pessoas alheias à família.
Dez anos se passaram na mesma rotina.
Os trabalhos no monte do Roncão, algum contrabando, algumas pescarias com o moleiro e o Silva e, o nosso Tonho a tocar cada vez menos, embora até tivesse tocado em baptizados e casamentos.
Nos primeiros tempos de casado, conformou-se com a esterilidade da esposa, mas agora passado este tempo começou, com alguma frequência, a falar nisso à Bia Figueiras.
Queria à viva força que a Bia lhe desse um filho, um descendente a quem ele poderia deixar os seus bens, a sua casa que entretanto acaba de pagar.
Desde que casara, poucas cargas de café passara, agora com a casa paga e querendo dedicar-se mais à esposa, decidiu deixar o contrabando.
- Para que me serviram estes anos de trabalho, de sofrimento e de risco de vida? - esta interrogação começou a apoquentá-lo com alguma frequência.
Decidiram ir à aldeia do Rosário consultar o “poeta”, um curandeiro que em pouco tempo alcançou grande fama. A Bia Figueiras logo no primeiro dia que tomou o remédio sentiu-se mal. Ocultou este estado ao marido. Ao segundo dia piorou e começou a não ter apetite.
O Tonho alegrou-se e perguntou à mulher.
- Já engravidaste? - ela encolheu os ombros e nada disse.
- É preciso esperar - pensou o Aperta.
Por falta de apetite, a Bia começa a enfraquecer e só lhe apetece estar deitada.
O Tonho começou a vir algumas noites a casa e sempre a encontrava deitada. Nos primeiros dias pensou que estaria em repouso para não abortar e mimava a esposa com caldinhos de farinha torrada ou de chocolate.
Um dia falando com o moral de parelhas, este perguntou - Tem vómitos - Não - respondeu o Tonho.
- Então isso não é gravidez, ela está doente, é melhor procurares um médico - recomendou o tio Mocho.
O Tonho deixou de imediato o trabalho e dirigiu-se a Terena para chamar o Doutor Galhardas.
Entrou na taberna para cumprimentar o Silva que o convida para petiscar peixe do rio frito, com o tio Laurentino Manitas, o melhor apregoador de Terena. Demorou-se pouco tempo e dirigiu-se ao consultório contando ao médico o estado da esposa.
- Chegaste a hora certa, só agora despachei o último doente e o harmónio? - pergunta de repente o doutor.
- Já pouco toco - É pena gostei tanto do ouvir.
O doutor tinha assistido, na sociedade, à actuação do tocador Aperta.
Chegados a casa, o doutor encontra a Bia muito débil.
Septicemia diagnosticou.
A frase do doutor provocou um abalo maior no nosso Tonho, do que ter levado um coice no estômago da mula ratinha, a mula mais arisca do monte do Roncão.
O Tonho tinha a consciência que aquela doença, desenvolvida por via sanguínea a partir de outra já existente era muito grave, quase incurável.
Os remédios do “poeta” na tentativa da Bia engravidar tinham despoletado a doença.
O nosso protagonista começa a arrepender-se da sua insistência, e só agora compreendeu o sacrifício que a Bia fazia para lhe proporcionar a alegria de lhe dar um filho.
Apesar dos esforços do doutor a Bia Figueiras finou-se ao fim de dois dias.
Com a sua morte o Aperta sentiu desmoronar-se tudo aquilo que durante os seus anos de vida tinha conseguido, que ele e a esposa consideravam a seu mundo.
Só ao fim de três dias o agora viúvo Tonho Aperta saiu de casa.
Durante este tempo arrumou a casa e deu um jeito no quintal, tentou fazer compreender à burra e à cabra que a dona morrera.
Fixou o olhar no harmónio e viu-se a tocar em todas as freguesias do Concelho, recolhendo fortes e morosos aplausos, mas o que lhe fez humedecer os seus olhos, foi a recordação do baile da Santa Cruz, em sua casa, onde pela primeira vez a sua Bia lhe dera um beijo.
Outra triste surpresa teve ao verificar o pombal, o pombo morrera.
Este acontecimento foi motivo de cisma, durante muito tempo, do Tonho.
- Porque morrera o pombo e não a pomba? Ou porque não morreram os dois?
O Aperta despede-se
O Tonho Aperta despediu-se da profissão de carreiro e passou a trabalhar à jorna.
Com uns peixes apanhados no Guadiana, quase sempre no pego abaixo do moinho da Cinza, o pego mais profundo do rio, dava-lhe para viver.
Um dia, no moinho encontrou o Silva pescaram juntos e decidiram vender o peixe em Terena, onde foi apregoado pelo tio Laurentino.
O Silva consegue, finalmente, convencer o nosso protagonista a combater na Guerra Civil de Espanha e combina o seu encontro, no moinho da Azenha del Rei, com Jacinto Cardoso, um homem de Terena já a combater em Espanha.
O Cardoso testava sempre os novos aspirantes a recruta de guerrilha, para lhe apreciar o grau de coragem revolucionária neles existentes, para isso apresentou-o a Luís Garçoa, que trabalhava no Monte da Estacada, em Espanha e auxiliava, às escondidas do patrão, o seu conterrâneo Jacinto Cardoso.
Os três homens conversavam sobre o perigo que estavam expostos, quando uma pomba branca em voo rasante passou rente a cabeça do Tonho Aperta.
O imprevisto e rápido voar da ave assustou os três companheiros de tal modo que o Cardoso chegou a pegar na espingarda.
O Garçoa, o mais calmo, observa a reação do nosso protagonista, que seguia com o olhar voo da pomba, e diz para o Cardoso
- O estado de espirito do Aperta nunca o deixará ser um guerrilheiro, torna-se presa fácil para o inimigo.
Jacinto Cardoso concordou.
Durante o caminho e apesar de constantemente o incentivar não lhe fora capaz de lhe alterar o ânimo.
O Silva tinha falhado, pela primeira vez, a prospeção deste recrutamento.
O Tonho partiu para Montejuntos, desanimado consigo próprio.
As silvas rasgavam-lhe as calças, os carapetos picavam-lhe o corpo e os alandros e as estevas chicoteavam-no.
Qualquer cova ou pedra mais saliente o fazia cair.
Pensou no suicídio e acabar assim com aquele sofrimento, mas o voo daquela ave impressionou tanto que o fazia caminhar até casa,
Sentia saudades da burra, da cabra a quem tinha, antes de partir, aberto as portas.
Quando se lembrava do harmónio soluçava e não continha as lágrimas.
Já perto do moinho da Cinza, por se lembrar que fora ali que pela primeira falara à Bia Figueiras, o único amor da vida, soltou um grito de raiva.
Raiva contra o destino, contra a sina que ele deveria ter lido e interpretado de maneira diferente, com um outro comportamento, sobretudo em relação à sua falecida.
O cão ouviu-o e ladrou-lhe.
- Cala-te piloto, até tu me escorraças - disse em tom desgostoso.
O piloto ouvindo-o corre de contentamento, empinou-se a ele e fê-lo sentar.
Lambeu-lhe as mãos sanguentadas de tanto cair e a cara golpeada pelos carrapetos e silvas. O Tonho sentiu-se acarinhado, sentimento que após a morte da Bia jamais sentira. Adormeceu por momentos e ganhou forças.
O cão seguiu-o durante algum tempo depois parou e sentou-se seguindo o Tonho de vista que sentindo a sua falta, lhe acenou.
Chegou a casa ao romper da aurora.
Ao abrir a porta uma pomba branca, que lhe pareceu a mesma do outro dia entra em casa, poisa nas costas da cadeira onde a Bia se sentava e rolou.
O Tonho julgou que teria fome.
De repente, abrindo a porta do quintal ouve o tremelicar dos lábios da burra e o som de um pequeno berro da cabra. Olhou em volta estava tudo como quando ele partira. Até o alecrim e o malmequer intensificaram os seus cheiros.
Só no pombal a pomba não estava.
Voltou a entra em casa e a ave continuava na cadeira.
Pareceu-lhe ver a Bia, ouviu a sua voz, olhou para o harmónio e viu-o a tocar o “Tango à média luz”, debruçou-se com a mesma vénia de quando ia buscar a Bia para dançar, em frente da pomba e dançou. Dançou maravilhosamente sentindo-se nos braços da Bia Figueiras, respirando o seu cheiro, sentindo o seu calor. E ela estava tão bonita e tão leve, que lhe apetecia morrer a dançar.
Ouve quem o ouvisse dizer “Olha Bia somos admirados” e cai desemparado no lajeado da cozinha, naquele dia frio como uma sepultura.
Testemunhos longínquos da época assim mo relataram, outros deles contemporâneos, contaram-me de maneira um pouco diferente.
Viram o tocador Aperta tocando a “Rosinha dos limões”, a seguir uma pomba branca, que lhe saiu de casa.
O povo de Montejuntos e de Ferreira, com o tio Mocho e o patrão, ao lado do Tonho, este sempre tocando, subiram a rua e pararam no terreiro da Santa Cruz.
Pessoas dignas de crédito e crentes, relataram-me que nunca, nem na romaria mais antiga do Concelho, a festa dos Prazeres, viram tanta gente e sentiram tanta fé. Uma fé diferente de todas as que até aí sentiram, uma fé de quem acredita na eternidade do amor, revelando o amor do Tonho e da Bia.
Pararam no terreiro onde a pomba pousada os esperava.
A multidão círculo deixou a pomba e o tocador no meio.
Como por encanto e soando cada vez mais alto ouve-se o “Cântigo das Oliveiras” tal como a Bia Figueiras o interpretava.
Em uníssono a multidão também cantou. A Bia parecia estar em cada um dos presentes.
O Tonho Aperta deixa o harmónio e num impulso incontrolável tenta agarrar a pomba, que foge voando, e ali acabou para sempre o nosso protagonista.
Com a fuga da pomba branca o “O Cântigo das Oliveiras” terminou, dando lugar a cenas e choro comoventes.
O harmónio está guardado, à espera de um novo tocador, no monte do Roncão, cujo lavrador, o senhor Zé Ramalho quando se referia ao seu criado Tonho Aperta, ousava sempre esta expressão de pena, “não morreu de velho morreu envelhecido por amor”
Durante muito tempo ouve quem visse a burra entre Faleiros e Montejuntos. Quando alguém a tentava apanhar, agora livre da pressão do contrabando e ciosa da liberdade que o dono lhe concedera, dava dois coices e fugia.
A cabra foi ter ao Moinho da Cinza onde acabou os seus dias.
E a bomba branca?
Houve e ainda há quem acredite que a pomba voltará, no dia três de Maio, numa Festa da Santa Cruz, para encarnar uma donzela, cuja voz, corpo e alma permita interpretar a Madalena como a Bia Figueiras sempre o fez.
A lenda da pomba branca confundia-se nos testemunhos que recolhi com a história do Tonho Aperta, do velho Aperta, a história de um tocador.
Hélder Salgado.
15-02-2012.
Tuesday, February 21, 2012
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