Termina aqui a " Trilogia do Quadiana "
Relembramos que esta narrativa, tal como as outras que a antecederam, foi encontrada dentro de uma garrafa que estava encalhada num açude do rio.
O manuscrito não estava assinado e vinha redigido em língua castelhana.
A tradução, mais uma vez, é da responsabilidade de Eveline Sambraz.
O título também é da responsabilidade da tradutora.
« Casas Novas de Mares »
Quando Pablo Picasso completou oitenta anos de vida, lá pelo outono de 1961, reuniu na sua propriedade, no sul de França, uma grande quantidade de amigos; dessa comemoração constou uma tourada privada em que actuou, entre outros, Luís Miguel Domingín, ele próprio amigo de Picasso; pois foi durante os festejos de aniversário do pintor, que se desenharam os primeiros planos da minha entrada em Portugal.
A direcção do PCE ( Partido Comunista de Espanha ) há muito que vinha tentando montar em Portugal, uma organização de retaguarda, afim de apoiar o aparelho clandestino do partido que operava no interior de Espanha. Seria eu o responsável por essa tarefa.
Hoje - trinta anos depois - ao relembrar esses tempos, quero aqui deixar um sinal de muita saudade para aquele que primeiro se lembrou da forma como eu poderia entrar em Portugal : Domingo Dominguín; nem mais; Domingo Dominguín, irmão de Luís Miguel Dominguín.
Por essa época eu vivia em Espanha, incorporado na organização clandestina do partido, sempre munido de documentos falsos que essa mesma organização me facultava; documentos de tal maneira bem feitos que nada os distinguia dos autênticos.
Também por essa época, já Domingo Domingín era dirigente do partido, embora não vivesse em clandestinidade; não que se ignorasse a forma como pensava, todos sabiam da sua ligação ao partido, inclusive a polícia política de Franco tinha conhecimento disso, mas o facto de ser irmão do melhor matador de touros de Espanha nessa altura, e também o facto de pertencer a uma família que, sem reservas, sempre tinha apoiado o regime franquista, fazia com que a polícia esperasse uma ocasião para o prender em flagrante; como, aliás, aconteceu mais tarde.
Luís Miguel Dominguín, que nunca se envolvera em política, era, no entanto, incapaz de negar fosse o que fosse ao irmão; assim, ali mesmo, durante a comemoração dos oitenta anos de Picasso, no sul de França, foi elaborado o plano que me colocaria em Portugal.
« Eu faria parte daquela corte de aficcionados que sempre acompanha os matadores de touros nas suas deslocações, quando Luís Miguel Dominguín se deslocasse a Badajoz, para actuar numa corrida, por altura da feira de São João, no verão seguinte. Pela minha parte, teria que assegurar a ligação com os camaradas do partido português, afim de poder ser recolhido em Elvas. »
Um mês antes da data da operação, tudo estava planeado ao mais pequeno pormenor : Depois da corrida, a comitiva, cerca de quinze pessoas, entre as quais Lúcia Bosé, mulher de Luís Miguel, iria jantar à pousada de Elvas; no regresso, a comitiva viria desfalcada, pois eu seguiria o meu caminho e não voltaria a Badajoz; todos os detalhes estavam assegurados, mesmo as autorizações para passagem na fronteira.
Como estas acções conspirativas são sempre rodeadas do maior segredo, apenas Luís Miguel Domingín sabia que eu não regressaria a Espanha; no entanto, sempre me pareceu que Lúcia Bosé, que era italiana, e em tempos tinha participado em algumas iniciativas do partido italiano, nomeadamente na festa anual do " L'Unitá ", estava a par do que se ia passar.
Bem dito, melhor feito.
No fim do jantar, à porta da pousada, e depois do reconhecimento, feito através dos sinais previamente combinados, meti-me num citroen boca de sapo e ala que se faz tarde; esta operação foi de tal forma bem executada que os restantes convivas só muito mais tarde se aperceberam da minha falta; para isso deve ter constituído motivo bastante as fortes libações durante a refeição; tanto quanto sei, tudo lhes correu da melhor maneira durante a viagem de regresso a Badajoz; nem a passagem da fronteira foi problema.
Também, quem iria arranjar problemas ao maior matador de touros do mundo ! ?
Tomámos o caminho do sul; por uma estrada que me pareceu correr, mais ou menos paralela ao rio Quadiana, passando por várias localidades cujos nomes retive : Juromenha, São Brás dos Matos, Rosáro, Capelins; depois foi a vez de uma povoação muito dispersa que, acho, se chamava Santiago Maior, e por fim, chegámos à aldeia em que pernoitaria e de cujo nome jamais me esquecerei, pois nunca encontrei uma terra com um nome tão poético : Casas Novas de Mares.
Demorámos cerca de cinco horas em toda esta viagem, porque todas as estradas eram de terra batida, estando algumas em tão mau estado, que nos obrigavam a andar a passo de caracol, e a última coisa que queríamos era que o carro ficasse no fundo de algum daqueles buracos.
O meu companheiro parecia conhecer a região como as suas mãos, o que não o impediu de estar alerta durante toda a viagem, pois, segundo me disse, era usual haver patrulhas da guarda fronteiriça, já que se tratava duma zona de contrabando; entregou-me a um casal de velhotes, num monte isolado, que tinham à minha espera uma ceia e me convidaram a comer, pedindo desculpa pela modéstia da refeição.
Eu, um intelectual, vindo de famílias abastadas, habituado a uma vida citadina e que, por opção, me encontrava naquela situação, perdido algures no Alentejo, absolutamente dependente daquelas pessoas, senti que o internacionalismo, termo que eu utilizava frequentemente, quando me referia à luta de classes, estava bem representado ali; apesar dos anos de clandestinidade que já levava, apesar dos maus momentos que já passara, apesar da dureza que a vida clandestina sempre implica, apesar de pensar que estava bem curtido pela vida, ainda me emocionei.
Tive que esconder os olhos para que os meus hospedeiros não vissem o brilho que as lágrimas lhe deram.
O companheiro que me trouxe, João José Potra ( vim a saber o seu nome mais tarde, já depois da revolução de Abril ) depois de comer daquela ceia, muito rapidamente, despediu-se e avisou-me que no dia seguinte alguém apareceria para me levar para o próximo destino.
A cama em que dormi estava de acordo com a ceia : Simples, mas confortável.
Tudo se passou como previsto.
Passada uma semana já estava a trabalhar na organização dos pontos de apoio que ajudariam os companheiros que em Espanha lutavam contra o franquismo.
E de tal maneira esses pontos de apoio funcionaram, que se mantiveram activos até à queda da ditadura no meu país, já em meados da década de setenta.
Mas ainda hoje, passados trinta anos, de todos os que me ajudaram nessa noite, aqueles que mais vivamente me ficaram na memória, continua a ser o casal de companheiros que, numa aldeia perdida da planície alentejana, me deu guarida por uma noite.
FIM
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