Friday, March 25, 2011

CHELES

»A narrativa que se segue faz parte do espólio encontrado numa garrafa, encalhada no açude duma azenha do rio Quadiana, antes da construção da barragem do Alqueva.

A garrafa foi encontrada por um pescador de Juromenha, Maurício de seu nome, que, em vez de trazer da pescaria, quatro ou cinco peixes, para animar uma tardada no restaurante do Zé do Alto, acabou por trazer uma garrafa, bem rolhada, que continha uma dúzia de folhas de papel.
Essas folhas vinham escritas em língua espanhola e, como não vinham assinadas, desconhece-se quem é o autor.
A tradução é de Eveline Sambraz.
A tradutora decidiu dar-lhe o título de « TRILOGIA DO QUADIANA » na medida em que parecem ser três narrativas autónomas, embora o nome das personagens se assemelhe.
Hoje publicamos a primeira.

=== CHELES ===

Esta, é a história de dois irmãos; irmãos gémeos; fisicamente, parecidos como duas gotas de água.
Um português e outro espanhol; é desses dois irmãos que vos quero falar; não que pretenda contar toda a sua vida, pois, para isso, não chegariam as páginas que esta narrativa vai ter; seria preciso um romance e, a tal empreendimento, eu não me atrevo. Perguntará quem ler estas linhas : « Se eram gémeos porque tinha um nacionalidade portuguesa, e outro nacionalidade espanhola ? » Esta explicação não sendo simples nem vulgar, pode, pelo menos, ser rápida. No fim da primeira década do século XX, por altura da implantação da república, chegou a Portugal, vindo de Espanha, um casal que trazia consigo um filho com poucos anos de idade, chamado Juan José Rodriguez Potra; vinham fugidos por motivos políticos; em Espanha, numa povoação do sul da Extremadura, tinham deixado um outro filho na companhia de familiares, que não os acompanhara por estar gravemente doente, com febres altíssimas, cuja origem desconheciam; não querendo arriscar a vida do filho, pois também não sabiam o que os esperava em Portugal, optaram por deixá-lo em Espanha na companhia dos avós. A sua estadia em Portugal seria muito curta, pensavam eles, era só até os motivos e as paixões que os tinham obrigado a sair ficarem mais calmos; mas essas paixões e esses motivos nunca mais acalmaram, como todos muito bem sabemos, e por cá foram ficando até decidirem assentar definitivamente no Alandroal. Instalaram-se num monte entre as Hortinhas e a Malhada Alta. Monte do Meio, assim se chamava.
Esses meninos, Juan José Rodriguez Potra e Rufino José Rodriguez Potra, são os dois irmãos que referi no início desta narrativa; irmãos gémeos, como também já referi. Assim, os dois irmãos, vindos do mesmo tronco familiar, acabaram por ser criados em países diferentes; mas não era só isso que os distinguia; para lá da aparência física e do parentesco, nada mais tinham em comum.
( Deixem-me fazer aqui uma breve pausa na narrativa para me apresentar : Chamo-me Guadalupe José e sou filha do Juan José Rodriguez Potra. Serei eu a narradora. Fui eu quem acompanhou o meu pai aos funerais do irmão, em Cheles, no ano de 1970. )
Mas cada coisa em seu tempo e em seu lugar; por agora, deixem-me explicar porque eram estes irmãos tão diferentes na forma de estar na vida :
O meu pai, rapidamente mudou de nacionalidade e ficou a chamar-se, de forma muito portuguesa, João José. Ingressou na marinha, no ramo da aviação naval, uma área militar que, até às proezas de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, era encarado mais como uma extravagância do que como tropa a sério. Não se escandalizou com o golpe militar do general Gomes da Costa em 1926 e foi ficando na aviação naval, progredindo na carreira. E quando aquele professor de Santa Comba Dão tomou conta do país, também não se alarmou.
Mas, entretanto, chegava o ano de 1936 e a guerra civil espanhola; aí, confessou mais tarde, muito mais tarde, cometeu o seu primeiro grande erro; fez parte dos " Viriatos ", voluntários portugueses que foram em auxílio do general Franco; por lá andou durante quase dois anos, lidando com a mais moderna tecnologia aeronáutica germânica, pois como se sabe, os alemães também vieram em auxilio dos nacionalistas espanhóis, nomeadamente com várias esquadrilhas de aviação que ficaram conhecidas como Legião Condor ( O bombardeamento da cidade de Guernica foi um dos crimes cometidos por essa tal Legião Condor - Pablo Picasso soube imortalizar essa acção quando pintou o quadro, com o mesmo nome, que actualmente se encontra exposto no Museu do Prado, em Madrid ). Voltando ao meu pai : Quando se justificou, a minhas instâncias, muitos anos depois, disse-me que em Portugal nunca teria tido acesso ao que de mais moderno se produzia nesse campo, na medida em era a Alemanha que levava a palma, por essa altura, na construção de aviões. Mas tinha cometido, a meu ver, um erro mais grave : Já durante a 2ª Guerra Mundial, acompanhou, como voluntário, a Divisão Azul, quando os espanhóis decidiram ajudar os alemães no cerco a Leninegrado.
Foi quando nós, eu e ele, estivemos de costas voltadas durante vários anos, pois apesar da minha pouca idade, a compreensão dos acontecimentos dessa época já não me passava ao lado; foi também por essa altura que deixou a aviação naval e passou a interessar-se pelos trabalhos agrícolas no Monte do Meio, transformando-se num lavrador sempre à beira da falência.
Está assim apresentado um dos dois irmãos : O João José Rodriguez Potra.
Vou agora apresentar-lhes o outro irmão, o Rufino : Muito cedo se destacou pela rebeldia; criado desde criança pelos avós, a ditadura do general Primo de Rivera apanhou-o em Madrid quando frequentava a universidade num curso que não chegou a terminar; inclinado para as artes, abandonou a universidade e envolveu-se na tumultuosa vida madrileña do fim dos anos vinte e princípio dos anos trinta; companheiro de Rafael Alberty, Garcia Lorca e Miguel Hernandez; exímio tocador de guitarra, actor, poeta e saltimbanco. O advento da II República Espanhola apanhou-o nessa vida; de imediato saltou para a primeira linha dos acontecimentos e depois do alzamiento de Franco, em 1936, resistiu em Madrid até ao fim; o grito de Dolores Ibarruri " no passarán " encontrou nele plena correspondência; depois do fim da guerra civil foi preso e libertado no fim dos anos quarenta, depois de várias vezes ter estado à beira do fuzilamento; depois da libertação regressou a Cheles, pequeno pueblo ribeirinho do Quadiana e ali viveu até à sua morte em 1970. Tinha, como grande amigo em Portugal, o António da Cinza, velho amigo de infância. O meu pai foi logo avisado da morte do irmão por parentes que ainda tínhamos em Cheles. Saiu de casa e voltou horas depois munido de vistos que nos permitiam partir para Espanha imediatamente. Estava angustiado, notava-se o seu sofrimento no rosto; aqueles dois irmãos, em sessenta e quatro anos de vida, não tinham estado juntos mais que uma dezena de vezes; e nenhuma das vezes em que se encontraram tinha terminado de forma harmoniosa : « siempre de espaldas, fascista » ouvira eu dizer, uma vez, ao tio Rufino, quando já era mais crescida e começava a questionar-me sobre o porquê daquela animosidade, daquela falta de afecto entre os dois irmãos, ainda por cima irmãos gémeos.
Foi assim que me encontrei ao volante do " boca de sapo " a caminho de Cheles; as condições de saúde de minha mãe não permitiam que nos acompanhasse; passaríamos a fronteira no posto do Caia; o meu pai conhecia o responsável fronteiriço, o que seria muito útil para problemas de última hora na passagem da fronteira; duas horas depois estávamos em Cheles; o meu pai não disse uma única palavra durante a viagem; dormiu, ou fingiu dormir durante a maior parte do tempo. À nossa espera estavam os parentes que nos tinham avisado e disseram-nos que o tio Rufino estava a ser velado na " finca " em que tinha vivido nos últimos anos.
O corpo do tio Rufino já estava no caixão em que iria ser enterrado; Tinham-lhe vestido um fato escuro, camisa sem colarinho e, na gola do casaco, alguém tinha colocado uma pequena fita de tecido vermelho, presa com um alfinete; estava com um ar sereno, com ar de quem tinha cumprido as suas obrigações, e até parecia sorrir; os bigodes, completamente grisalhos, que lhe caíam ao canto dos lábios, estavam bem aparados, dando a impressão que alguém se tinha preocupado em o arranjar para uma ocasião solene.
As caras das pessoas que o velavam estavam sérias e tristes.
Algumas dessas pessoas eram minhas conhecidas, porque durante vários anos da minha juventude eu tinha passado algumas temporadas em casa do tio Rufino; fora eu a ligação com o irmão, como o tio dissera algumas vezes; também me dissera que, à semelhança do que acontece com as árvores, também as famílias precisam de amputar alguns ramos para que os novos rebentos possam crescer; já na altura eu compreendera as palavras do tio Rufino, mas foi na noite do seu velório que me surgiram com grande clareza, e surgiram-me assim ao ver o meu pai, isolado, sentado ao lado do caixão, olhando para o irmão com uma expressão que eu nunca lhe tinha visto; aquele homem estava a sofrer, talvez lembrando-se da forma como cada um deles tinha atravessado a vida. Quando me aproximei, com intenção de lhe manifestar algum do carinho que tinha andado arredio da nossa relação, disse-me que a natureza se tinha enganado e que eu era muito mais filha do irmão do que dele; e também me disse que compreendia isso muito bem. Desde criança que não me sentia tão próxima do meu pai !
Trouxe-o para o exterior, para o alpendre da casa e ali, longe dos outros, falámos longamente do que foi a nossa vida e do que poderia ter sido; dos erros cometidos, dos julgamentos que fizemos, das injustiças que praticámos, das teimosias em que insistimos, como o não ter estreitado relações com o irmão numa altura em que este o procurara, para que finalmente se encontrassem; falava como se eu não fosse sua filha, falava como se estivesse num confessionário, querendo ser absolvido de todos os erros praticados.
O mundo caiu-lhe em cima repentinamente.
Ignorou-me quando lhe chamei a atenção para a curiosidade que estava a despertar nas pessoas que velavam o tio Rufino e só se acalmou um pouco quando lhe disse que embora eu me identificasse muito com o irmão dele, eu era sua filha e que também me arrependia muito de não ter manifestado maior compreensão quando ele me fizera as primeiras confidências, procurando em mim um apoio que, visível e propositadamente, eu não lhe dera. Essa foi uma noite de acertar contas com o passado; não só entre pai e filha, mas também com a memória daquele que estava no caixão e que no dia seguinte iríamos sepultar.
Foi então que nos chamaram para dentro de casa. Iam prestar a homenagem dos heróis, disseram.
Adiantou-se um homem já idoso, seguramente com mais de oitenta anos, e desdobrou sobre o corpo do tio Rufino uma velha bandeira da república, de riscas horizontais : Vermelho, Ouro e Púrpura. Em seguida, sem se apoiar em qualquer papel escrito, chamou por cerca de uma dezena de nomes, homens e mulheres, que foram respondendo à chamada.
Alguns levantaram o braço, de punho cerrado, no momento de responder; depois, perante o nosso espanto, meu e de meu pai, sussurraram em coro e em tom muito baixo, o Hino de Riego.
No dia seguinte realizou-se o funeral. Regressámos a casa nessa mesma tarde. O meu pai levou algumas horas a convencer os restantes parentes a dividirem entre eles a herança do tio Rufino. Apenas se interessou por algumas velhas fotografias dos meus avós. Ficou combinada uma outra visita para tratar de assuntos legais. Era, manifestamente, uma situação muito dolorosa para todos eles; acho, até, que foi a minha presença que impediu cenas dramáticas. Todos eles sabiam o que eu pensava sobre os regimes que governavam os dois países ibéricos e alguns até tinham conhecimento da actividade clandestina que, por essa altura, eu já desenvolvia. Aliás, a atitude dos nossos parentes espanhóis foi bem clara no momento das despedidas. Fui eu a única a receber beijos e abraços. Para o meu pai reservaram alguns secos e rápidos apertos de mão.
Com o passar dos anos, o meu pai, que nunca tinha sido muito comunicativo, ficou ainda mais triste e sorumbático.
Quando fui presa, pouco antes da revolução de Abril, tive dele todo o apoio possível; já velho, visitava-me com frequência; ainda mexeu uns cordelinhos para me libertar, mas isso apenas serviu para ele confirmar a pouca importância que tinha no regime que sempre servira.
Ainda tentei arrastá-lo para a rua no 1º de Maio de 1974.
Não consegui.
Mas quando cheguei a casa, já alta madrugada, ainda estava a pé. Disse-me que tinha aberto uma garrafa de champanhe, mas como eu me demorara, o champanhe aquecera.
Foi bebido quente.
Eu ia lá perder a ocasião de beber champanhe com o meu pai no dia 1º de Maio !
Morreu em 1985.
Pediu para ser enterrado ao lado do irmão.
E lá está.
Em Cheles.
Unidos na morte; como nunca o estiveram em vida.
FIM

1 comment:

  1. Anonymous1:18 PM

    Interessante !
    Um texto que reflete bem a vida nos dois lados da fronteira, durante a vigência dos regimes autoritários que governaram Portugal e Espanha.
    E muito exemplificativo de como uma família se pode dividir por campos políticos opostos.
    Fico à espera dos outros dois textos que completam a Trilogia.
    Obrigado ao blog, já que parece que o autor é anónimo.

    ReplyDelete